«(…) Distinção, feita igualmente por
G. Canguilhem, entre as escalas micro e macroscópicas da história das
ciências, onde os acontecimentos e suas consequências não se distribuem da
mesma forma: assim, uma descoberta, o aparecimento de um método, a obra de um
intelectual, e também seus fracassos, não têm a mesma incidência e não podem
ser descritos da mesma forma num e noutro nível, onde a história contada não é
a mesma. Redistribuições recorrentes que fazem aparecer vários passados,
várias formas de encadeamento, várias hierarquias de importância, várias redes
de determinações, várias ideologias, para uma única e mesma ciência, à medida
que o seu presente se modifica: assim, as descrições históricas se ordenam necessariamente
pela actualidade do saber, se multiplicam com suas transformações e não deixam,
por sua vez, de romper com elas próprias (M. Serres acaba de apresentar a
teoria desse fenómeno no domínio da matemática). Unidades arquitectónicas
dos sistemas, tais como foram analisadas por M. Guéroult e para as quais a descrição
das influências, das tradições, das continuidades culturais não é pertinente
como o é a das coerências internas, a dos axiomas, das cadeias dedutivas, das
compatibilidades. Finalmente, as escansões mais radicais são, sem dúvida, os
cortes efectuados por um trabalho de transformação teórica quando nasce uma ciência destacando-a da ideologia
de seu passado e revelando este passado como ideológico. A isso seria
necessário acrescentar, é evidente, a análise literária, considerada daqui por
diante como unidade: não a alma ou a sensibilidade de uma época, nem os grupos, as escolas, as gerações ou
os movimentos, nem mesmo a personagem
do autor no jogo de trocas que ligou a sua vida à sua criação, mas sim a estrutura própria de uma obra, de um livro, de um
texto.
E,
assim, o grande problema que se vai colocar, que se coloca, a tais análises
históricas não é mais saber por que caminhos as continuidades se puderam
estabelecer; de que maneira um único e mesmo projecto pôde-se manter e
constituir, para tantos espíritos diferentes e sucessivos, um horizonte único;
que modo de acção e que suporte implica o jogo das transmissões, das retomadas,
dos esquecimentos e das repetições; como a origem pode estender o seu reinado
bem além de si própria e atingir aquele desfecho que jamais se deu, o problema
não é mais a tradição e o rasto, mas o recorte e o limite; não é mais o
fundamento que se perpetua, e sim as transformações que valem como fundação e
renovação dos fundamentos. Vê-se, então, o espraiamento de todo um campo de questões,
algumas já familiares, pelas quais essa nova forma de história tenta elaborar a
sua própria teoria: como especificar os diferentes conceitos que permitem
avaliar a descontinuidade (limiar, ruptura, corte, mutação, transformação)?
Através de que critérios isolar as unidades com que nos relacionamos: O que é uma ciência? O que
é uma obra? O que é uma teoria? O
que é um conceito? O que é um texto? Como
diversificar os níveis em que podemos colocar-nos, cada um deles compreendendo as
suas escansões e a sua forma de análise? Qual é o nível legítimo da formalização? Qual é o da interpretação? Qual é o da análise estrutural? Qual é o das determinações de causalidade?
Em suma, a história do pensamento, dos conhecimentos, da filosofia, da
literatura, parece multiplicar as rupturas e buscar toda as perturbações da
continuidade, enquanto a história propriamente dita, a história pura e simplesmente,
parece apagar, em benefício das estruturas fixas, a irrupção dos acontecimentos».
In
Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, 1969, tradução Luiz Neves, Editora Forense
Universitária, Rio de Janeiro, 2008, ISBN 978-852-480-344-7.
Cortesia
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