sexta-feira, 6 de novembro de 2015

A Arqueologia do Saber. Michel Foucault. «… o problema não é mais a tradição e o rasto, mas o recorte e o limite; não é mais o fundamento que se perpetua, e sim as transformações que valem como fundação e renovação dos fundamentos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Distinção, feita igualmente por G. Canguilhem, entre as escalas micro e macroscópicas da história das ciências, onde os acontecimentos e suas consequências não se distribuem da mesma forma: assim, uma descoberta, o aparecimento de um método, a obra de um intelectual, e também seus fracassos, não têm a mesma incidência e não podem ser descritos da mesma forma num e noutro nível, onde a história contada não é a mesma. Redistribuições recorrentes que fazem aparecer vários passados, várias formas de encadeamento, várias hierarquias de importância, várias redes de determinações, várias ideologias, para uma única e mesma ciência, à medida que o seu presente se modifica: assim, as descrições históricas se ordenam necessariamente pela actualidade do saber, se multiplicam com suas transformações e não deixam, por sua vez, de romper com elas próprias (M. Serres acaba de apresentar a teoria desse fenómeno no domínio da matemática). Unidades arquitectónicas dos sistemas, tais como foram analisadas por M. Guéroult e para as quais a descrição das influências, das tradições, das continuidades culturais não é pertinente como o é a das coerências internas, a dos axiomas, das cadeias dedutivas, das compatibilidades. Finalmente, as escansões mais radicais são, sem dúvida, os cortes efectuados por um trabalho de transformação teórica quando nasce uma ciência destacando-a da ideologia de seu passado e revelando este passado como ideológico. A isso seria necessário acrescentar, é evidente, a análise literária, considerada daqui por diante como unidade: não a alma ou a sensibilidade de uma época, nem os grupos, as escolas, as gerações ou os movimentos, nem mesmo a personagem do autor no jogo de trocas que ligou a sua vida à sua criação, mas sim a estrutura própria de uma obra, de um livro, de um texto.
E, assim, o grande problema que se vai colocar, que se coloca, a tais análises históricas não é mais saber por que caminhos as continuidades se puderam estabelecer; de que maneira um único e mesmo projecto pôde-se manter e constituir, para tantos espíritos diferentes e sucessivos, um horizonte único; que modo de acção e que suporte implica o jogo das transmissões, das retomadas, dos esquecimentos e das repetições; como a origem pode estender o seu reinado bem além de si própria e atingir aquele desfecho que jamais se deu, o problema não é mais a tradição e o rasto, mas o recorte e o limite; não é mais o fundamento que se perpetua, e sim as transformações que valem como fundação e renovação dos fundamentos. Vê-se, então, o espraiamento de todo um campo de questões, algumas já familiares, pelas quais essa nova forma de história tenta elaborar a sua própria teoria: como especificar os diferentes conceitos que permitem avaliar a descontinuidade (limiar, ruptura, corte, mutação, transformação)? Através de que critérios isolar as unidades com que nos relacionamos: O que é uma ciência? O que é uma obra? O que é uma teoria? O que é um conceito? O que é um texto? Como diversificar os níveis em que podemos colocar-nos, cada um deles compreendendo as suas escansões e a sua forma de análise? Qual é o nível legítimo da formalização? Qual é o da interpretação? Qual é o da análise estrutural? Qual é o das determinações de causalidade? Em suma, a história do pensamento, dos conhecimentos, da filosofia, da literatura, parece multiplicar as rupturas e buscar toda as perturbações da continuidade, enquanto a história propriamente dita, a história pura e simplesmente, parece apagar, em benefício das estruturas fixas, a irrupção dos acontecimentos». In Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, 1969, tradução Luiz Neves, Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2008, ISBN 978-852-480-344-7.

Cortesia de FUniversitária/JDACT