Madalena e os Evangelhos Gnósticos
«(…) A distinção entre Evangelhos Apócrifos e Evangelhos Gnósticos resulta
de catalogações históricas fundamentadas em questões de conteúdo. Como se
disse, os Apócrifos não exibem erros dogmáticos evidentes e os que apresentam
talvez não incomodem muito porque, na sua maioria, se dedicam à infância e
adolescência de Jesus. Por sua vez, os outros documentos, em grande parte relatando
os eventos posteriores à Ressurreição, são refutados com base em argumentos de
heresia, em particular gnóstica. Funda-se esta no facto de Valentim (c.100-160d.C.)
e Marcião de Sinope (c.110-160), por exemplo, defenderem
que só os seus próprios evangelhos e revelações apresentam os ensinamentos
secretos de Jesus: Estes escritos contam
inumeráveis histórias sobre o Cristo ressuscitado, o ser espiritual que Jesus representava,
uma figura que os fascinava muito mais do que o Jesus meramente humano, o
obscuro Rabi de Nazaré. Os escritos gnósticos começam onde os Evangelhos acabam,
narrando os encontros do Cristo espiritual com os seus discípulos. Assim, estes
textos exibem uma marcada vertente cristológica, justificada pelo duplo
objectivo de enraizamento na tradição cristã, e mais ou menos discreto desvio
face a essa forma de pensamento, uma heresia.
Heresia. Escolha, opção
Etimologicamente, heresia vem do
grego hairesis e significará escolha, enquanto herege vem do latim tardio haireticu,
derivado do grego hairetikós através
do provençal antigo heretge, com o
sentido de partidarista. S. Tomás d’Aquino define heresia como uma espécie de
infidelidade dos homens que, tendo professado a fé de Cristo, corrompem os seus
dogmas. Em ambos os casos afirma-se o termo pela sua qualidade de independência
e escolha face a um cânone ou credo prescrito por terceiros. Herege será quem
recusa as ideias e normas ditadas por outros, muitas das vezes acabando por
criar as suas próprias regras. Por tal, os textos heréticos serão aqueles que, de algum modo negam ou subvertem o dogma
que pretende impor a Igreja nascente. Conhecidos pelo período de
estabelecimento dos Evangelhos ortodoxos terão inclusive, como se viu,
fundamentado a necessidade de criação do cânone.
Os caçadores de heresias
A notícia destes textos e das seitas gnósticas chegaram-nos pela pena dos padres
da Igreja, os caçadores de heresias dos séculos II e III da nossa era: Justino
o Mártir, Ireneu de Lião, Hipólito de Roma, Clemente de Alexandria, Orígenes,
Tertuliano e o pagão Plotino. Todos referem os diferentes tratados de um modo
parcelar e tendencioso, pois têm como objectivo confesso defender os dogmas,
evitar os desvios. Embora o termo gnosticismo
só tenha sido cunhado pelo século XVIII, são os caçadores de heresias quem apelida
indiscriminadamente de gnósticos
todos os heréticos que combatem. Consideram-nos como duplamente perigosos, seja
por se auto-denominarem cristãos, seja por se assumirem como depositários de
ensinamentos transmitidos, mais ou menos secretamente, pelo Salvador aos
apóstolos. Recorrem tanto ao Antigo como ao Novo Testamento, daqui variando as
suas denominações, e defendem-se argumentando com Marcos (a quem, também anda atribuído
um segundo Evangelho oculto): Marcos, Quando
ficaram sozinhos, os que estavam junto dele com os Doze o interrogaram sobre as
parábolas. Dizia-lhes: A vós foi dado o mistério do Reino de Deus; aos de fora,
porém, tudo acontece em parábolas, a fim de que: vendo, vejam e não percebam; e
ouvindo, ouçam e não entendam; para que não se convertam e não sejam perdoados.
Apoiam-se, assim, numa tradição esotérica reportada oralmente por Jesus aos
discípulos, que complementaria o ensinamento exotérico veiculado em público e
registado no Novo Testamento. Daqui sucede que cada seita acabe por se colocar
sob a égide de algum dos doze apóstolos, organizando-se em torno de variados
evangelhos pretensamente elaborados por qualquer dos discípulos mais próximos
de Cristo, ou fabricados por contemporâneos com maior entendimento e habilidade para interpretar as escrituras.
Ireneu, o presbítero de Lião, acusa todos os gnósticos de mutilar as
escrituras, de usar excertos e citações em proveito próprio, de deturpar os textos
de modo a que provem as suas elucubrações
incorrectas. Além da proximidade, da mistura acrítica de informações de
proveniência vária (contaminar os textos sagrados com oráculos antigos e
pregações do presente, por exemplo), incomoda-o afirmarem possuir um
conhecimento superior.
As refutações dos heresiólogos de mais peso provam que as variantes das
narrativas evangélicas eram conhecidas ao seu tempo, e eles próprios acabam a
servir de intermediários na sua difusão pelo Ocidente, atravessando a Idade
Média e o Renascimento. Expurgam os escritos, sujeitam-nos a um resumo redutor
que ignora diferenças, por vezes fundamentais e antagónicas entre as várias
heresias. Num levantamento sumário encontram-se perto de 40 variedades. Isto porque,
ao alcançar a iluminação, cada indivíduo deverá escrever o seu próprio evangelho,
original e único como a revelação que recebeu. As acusações e críticas, desta
vez aos heresiólogos, foram crescendo de par com a lenta descoberta de
manuscritos gnósticos ao longo dos séculos. Adquiriram um novo impulso com o
aparecimento do extraordinário corpus da
Biblioteca de Nag Hammadi em 1945».
In Helena Barbas, Madalena, História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa,
2008, ISBN 978-989-8092-29-8.
Cortesia de Ésquilo/JDACT