segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Novas Cartas Portuguesas. Maria Barreno, Maria Horta, Maria Costa, (As Três Marias). «É óbvio que as Novas Cartas Portuguesas não teriam tido o eco que lhes conhecemos se não atingissem um nível simbólico em que se reconhecem mulheres de todos os continentes e classes sociais»

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Pré-prefácio
(Leitura breve por excesso de cuidado)
«(…) Quando o burguês se revolta contra o rei, ou quando o colono se revolta contra o império, é apenas um chefe ou um governo que eles atacam, tudo o resto fica intacto, os seus negócios, as suas propriedades, as suas famílias, os seus lugares entre amigos e conhecidos, os seus prazeres.  Se a mulher se revolta contra o homem nada fica intacto.
Terá sido este o pressentimento que acabou por levar as autoras das Novas Cartas Portuguesas aos bancos do tribunal? Bem o julgo. A uma sociedade que se apresentava sem saída soava como anúncio do fim essa revolta sem armas, essa explosão possível de tudo o que sempre fora tido por conveniente, por correcto, por assepticamente puro. Essa a razão escondida da cegueira cultural que nem sequer se permitiu o debate sobre o significado da obra, sobre o contexto social e literário em que se inseria, sobre o sentido profundo das suas mais contundentes afirmações.
É tal a rotura introduzida pelas Novas Cartas Portuguesas que a sua primeira abordagem só pode ser feita à luz do que elas não são. Não são uma colectânea de cartas, embora se reconheça nelas o estilo tradicionalmente cultivado pelas mulheres em literatura. Não são um conjunto de poemas esparsos, embora em poesia se converta toda a realidade retratada. Não são tão-pouco um romance, embora a história vivida (ou imaginada) de Mariana Alcoforado lhes seja a trama principal. São talvez um pouco de tudo isso. E ainda mais: uma forma nova de dizer a pessoa humana e o seu modo de estar no mundo, um ensaio que não se quer filosófico, mas que toca as raízes do ser, um contributo inédito para a antropologia social, no que (à maneira de um García Márquez ou de um Oscar Lewis) recolhe de vida, de sensações, de comportamentos singulares universalizados.
Porque rompem, extravasam. Daí que as Novas Cartas Portuguesas se caracterizem antes de mais pelo excesso. Excessivas as situações, excessivo o tom, excessivas as repetições dum mesmo acto, excessivo afinal todo o livro que vai terminando sem realmente terminar, como se tal excesso não coubesse nas dimensões normais. Nesse excesso – que não o é, aliás, apenas deste livro mas de todo o movimento neofeminista dos últimos anos – reside, afinal, a grande ambiguidade que fez com que as fronteiras entre o erotismo e a pornografia fossem consideradas ultrapassadas. Na lógica da própria obra, enquanto denúncia da opressão sexista, seria decerto de esperar que a relação homem/mulher, no que deles faz «uma só carne», fosse desdobrada, dissecada, em variados modos e momentos. Mas o que acontece é mais do que isso. Acontece o excesso como qualificativo de tudo, mesmo do que na relação homem/mulher é tido como quotidiano. Acontece o excesso na forma de tudo dizer tão proximamente que fica a impressão de ouvir a cada passo: «nesse acto eu sou». Acontece o excesso na ousadia de serem mulheres a quebrar os limites, a inverter a situação sujeito/objecto universalmente adquirida (ao apropriarem-se de situações até hoje só ditas por homens, as autoras «matam» de facto alguém: matam o fantasma do homem-senhor que paira no horizonte afectivo das mulheres. E matam-no com as próprias armas que o homem utiliza para dominar a mulher – Judite e decapitar Holofernes ... ).
Nesse excesso, o caminho percorrido é necessariamente egocêntrico.
Nas Novas Cartas Portuguesas, as mulheres comprazem-se em si próprias, a sua paixão alimenta-se de si. Daí a reivindicação obsessiva do corpo como primeiro campo de batalha onde a revolta se manifesta. A uma primeira leitura, tudo parece concentrar-se na materialidade de actos e de expressões sexuais, numa repetição, sincopada ao longo do livro, de descrições e de complacências. Dessa primeira leitura, de sentido literal, surgirá uma noção de sexualidade que para muitos leitores é limitada pelo próprio excesso dos actos e sensações em que é veiculada. Ficam na sombra dimensões claramente espirituais ou formas tranquilas (não excessivas) da expressão física da sexualidade. A alienação do corpo é a zona utilizada preferencialmente, embora não exclusivamente, pelas autoras para dizer, a um tempo, a opressão e a revolta, a sujeição e a autonomia das mulheres. Porquê esta alienação e não outra? Porque não o trabalho e as condições em que é realizado? Porque não o esforço ininterrupto e não remunerado dos encargos domésticos? Porque não a responsabilidade pela vida dos filhos nascidos ou por nascer? Porque não a inserção na vida social?
Todas estas zonas são do domínio público, enquanto a zona da opressão do corpo é do domínio privado. E é por forma contundente, dura, desmedida, que as autoras querem fazer estalar a hipocrisia que cobre essa zona privada. Que o fazem com grande narcisismo, à beira da rotunda do viável, é um facto. Que o dizem com palavras crispadas, também. Que imaginam situações que se subtraem ao domínio da moral, é evidente. Ao concentrarem-se sobre o corpo, correm as autoras um risco: o de o absolutarizarem como os homens o fizeram. De tratarem o corpo como uma «coisa», objecto da paixão ou seu exercício. E de uma «coisa» tudo pode ser dito – daí o excesso. Os limites que acabo de pôr são os que decorrem de uma primeira leitura, colada ao significado literal do texto. Fica a questão de saber se a revolta das mulheres se pode esgotar nessa reivindicação daquilo que tradicionalmente foram palavras de homens. Fica levantada a questão da moral e da sua invenção. Fica sobretudo caminho aberto para uma descoberta da sexualidade abarcando registos diversos. É óbvio que as Novas Cartas Portuguesas não teriam tido o eco que lhes conhecemos se não atingissem um nível simbólico em que se reconhecem mulheres de todos os continentes e classes sociais. Numa segunda leitura, o corpo, como lugar preferencial da denúncia da opressão das mulheres, excede-se naquilo que representa. Funciona como metáfora de todas as formas de opressão escondidas e ainda não vencidas. Ao apresentar aos leitores esta nova edição das Novas Cartas Portuguesas, é a essa segunda leitura que os convido. In Maria de Lourdes Pintasilgo
In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN 978-972-204-011-2.
                                                
Cortesia PdQuixote/JDACT