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«(…) Mas como? Por favor... Ignazio
ergueu os olhos, franzindo o cenho. Somos uma família de simples mercadores...
Sabe bem que isso não é inteiramente verdade. De qualquer maneira, o seu papel
na missão será secundário, a acção propriamente dita ficará a cargo de um
responsável. O monarca olhou de novo para o grupo de pessoas ali reunidas e, a
um aceno seu, o homem armado deu um passo à frente. Passou pelo atónito Ignazio,
fez uma mesura diante de Fernando e postou-se à sua esquerda. Com um segundo
aceno, Fernando III ordenou que cessassem os murmúrios na sala. Entendeu,
mestre Ignazio? Este homem se encarregará do aspecto estratégico e dirigirá as
acções bélicas necessárias à libertação de nossa tia Branca de Castela. Em
seguida, virando-se para o misterioso guerreiro, disse: por favor, messer
Filippo, mostre o rosto. O homem levou prontamente as mãos à cabeça e,
afastando a malha de aço que a recobria, revelou um rosto rude, parecido com
uma máscara de metal. No entanto o que o fazia temível eram os olhos, movidos
por uma inteligência incomum. Sem revelar nenhum espanto, Ignazio se lembrou de
já ter encontrado aquele homem muitos anos antes. Murmúrios às suas costas
revelaram-lhe que Willalme e Uberto se consultavam sobre a mesma questão. Messer
Filippo Lusignano, saudou Ignazio, estou feliz por vê-lo com boa saúde depois
de tanto tempo. Fico contente também por me ter reconhecido, mestre Ignazio, respondeu
o soldado, com um sorriso.
Como poderia me esquecer?
Beneficiei-me de sua escolta quando viajava para Burgos. Passaram-se já dez
anos e ainda lhe estou devendo. Peço-lhe que não fale em deveres de gratidão.
Ajudá-lo não me custou sacrifício algum. Contudo, se realmente quiser, no
futuro, terá oportunidade de me recompensar. Não há tempo para cerimónias, interrompeu
Fernando III. Temos questões mais urgentes. Messer Filippo, tenha a bondade de
expor a situação. Filippo pousou a cota de malha e os guantes sobre um banco e
falou: depois do fim da Quaresma, reuniu-se em Narbonne um concílio para discutir
a cruzada contra os cátaros do Languedoque. Na ocasião, lançou-se um anátema
sobre os condes de Toulouse e Foix, coligados com os hereges contra Branca de
Castela. Fez uma pausa para que os presentes absorvessem bem a notícia. A
rainha achou oportuno assistir ao concílio e, desde então, não soubemos mais
dela. Aí está: Branca parece ter-se dissolvido no nada. Olhou para o mercador
de Toledo. Há quem diga que ela foi raptada e se encontra prisioneira no sul da
França, vigiada por um tal conde de Nigredo. É só o que sabemos.
Ignazio cofiou a barba pensativo.
Quem forneceu essas informações? O venerável Folco, bispo de Toulouse,
respondeu Filippo. Tomou conhecimento disso ao fazer o exorcismo de um
possesso. Um exorcismo? Lusignano abriu os braços, num gesto vago. Não disse
nada de concreto sobre o assunto. Monsenhor Folco aguarda uma delegação nossa
para dar informações mais precisas. Após uma curta pausa, prosseguiu em tom
mais persuasivo: compreendo o seu espanto, mestre Ignazio, e até certo ponto
partilho dele. As palavras de um possesso são um indício precário, mas o
desaparecimento da rainha Branca é um facto incontestável. Quanto a isso, não há
dúvida. Pelo menos, sabemos por onde iniciar as investigações. Concordo.
Todavia, ainda não percebo em que posso ser útil. O mercador virou-se para
Fernando III, mas o seu olhar chocou com a expressão vítrea do monarca. São
tratos diplomáticos, sobre as quais não tenho experiência... A essas palavras,
uma voz ressoou do fundo da sala:
Ignazio Alvarez, que está
dizendo? Quer escapar dos compromissos, como costumava fazer quando ainda era
criança? O mercador estremeceu. Conhecia aquela voz, entretanto já fazia muito tempo
que não a ouvia. Viu a silhueta de um homem emergir das cortinas atrás do
trono, um velho mirrado de cabelos brancos e pele escura como casca de tâmara.
Vestia uma espécie de batina monástica, porém mais elegante. Quando a luz das
tochas o iluminou, o velhinho fez uma mesura na direcção do monarca. Até agora,
eu só ouvi. Permita-me que participe da conversa. Pois fale, magíster,
consentiu Fernando III». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do
Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa,
2013, ISBN 978-989-724-089-8.
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