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«(…) Esta experiência constitui um segundo traumatismo, de consequências
mais trágicas que o primeiro. E disto, os nossos historiadores não cuidaram. Só
Olíveira Martins, de quem se diz tão mal, mas a quem ninguém substituiu (o que
se chama substituir), pois fora da sua não há História de Portugal como remeditação
global do destino e devir colectivos, mas meras mantas de retalhos falsamente
unidas por falsos fios de opostas ideologias, anteviu qualquer coisa nesse
sentido. Os sessenta anos que, absurdamente, perpetuando o velho jogo de avestruz
que jogamos com a nossa alma, nós arredámos da consideração séria da História,
não são esse vácuo que os falsos patriotas gostavam que tivesse sido, mas
também não são a mera continuação do nosso devir nacional. Historiograficamente,
esta hipótese tem a seu favor o simples bom-senso e a realidade documental de
um viver sem descontinuidade, bem pouco resistente até, como uma idealística
visão do nosso passado se apraz em imaginar. O problema da independência
nacional não tinha então o perfil que a historiografia romântica e nacionalista
lhe atribuirá. Hoje, todos os escritores que nós celebramos dentro desses sessenta
anos filipinos seriam, pura e simplesmente, colaboracionistas. A verdade é que
não há na sua actividade literária sombra de má consciência. A vinculação
política fazia-se em relação ao Estado (a Coroa) que tinha o seu domínio
próprio, hierárquico e administrativo, mas não cultural; a vinculação orgânica
fazia-se em relação à Pátria que não é ainda Nação,mas terra comum, gente comum
que a vicissitude política não altera. Faria Sousa celebra em castelhano as
glórias lusitanas, sem ver nisso contradição alguma, e o que é mais importante,
sem que os espanhóis com elas se apoquentem. Na classe dirigente há uma oscilação
de fundo entre o vínculo natal e os deveres de Estado, cujo estatuto político
lhes parece normal. É nas camadas populares ou nos que estão mais próximos
delas, que o vínculo imediato ao ser racional resiste, mesmo inconscientemente,
à coexistência superficialmente pacífica de espanhóis e portugueses. Elas que
têm o largo hábito do desamparo curtem segunda experiência de desamparados de
rei próximo e aos poucos forjam uma relação diferente com a totalidade do ser
racional. Nesses sessenta anos o nosso ser profundo mudou de sinal. Como
portugueses esperámos do milagre, no sentido mais realista da palavra, aquilo que,
razoavelmente, não podia ser obtido por força humana.A morte do padre
Malagrida, um Vieira sem génio nem sorte, pôs termo (ou interrompeu) esse ciclo
de sebastianismo activo que representou, ao mesmo tempo, o máximo de existência
irrealista que nos foi dado viver; e o máximo de coincidência com o nosso ser
profundo, pois esse sebastianismo representa a consciência delirada de uma
fraqueza nacional, de uma carência, e essa carência é real. Das duas
componentes originais da nossa existência histórica, desafio triunfante e
dificuldade de assumir tranquilamente esse triunfo, aprofundámos então,
sobretudo, a nossa dificuldade de ser, como diria Fontenelle, a
histórica dificuldade de subsistir com plenitude política. Tornou-se então
claro que a consciência nacional (nos que a podiam ter) que a nossa razão de
ser, a raiz de toda a esperança, era o termos sido. E dessa ex-vida são Os
Lusíadas a prova do fogo.O viver nacional que fora quase sempre viver
sobressaltado,inquieto, mas confiado e confiante na sua estrela, fiando a sua
teia da força do presente, orienta-se nessa época para um futuro de antemão
utópico pela mediação primordial, obsessiva,do passado. Descontentes com o
presente, mortos como existência nacional imediata, nós começámos a sonhar simultaneamente
o futuro e o passado. Nunca se meditou a sério em actos tão significativos como
os da invenção de falsos documentos pelos monges de Alcobaça para provar a nossa
existência legal no passado, assim como, já depois da ressurreição, no labor
incrível dos nossos juristas para justificar o nosso direito a um lugar ao sol entre
os povos livres». In Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do
Destino Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.
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