terça-feira, 26 de junho de 2018

O Labirinto da Saudade. Eduardo Lourenço. «Nesses sessenta anos o nosso ser profundo mudou de sinal. Como portugueses esperámos do milagre, no sentido mais realista da palavra…»

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«(…) Esta experiência constitui um segundo traumatismo, de consequências mais trágicas que o primeiro. E disto, os nossos historiadores não cuidaram. Só Olíveira Martins, de quem se diz tão mal, mas a quem ninguém substituiu (o que se chama substituir), pois fora da sua não há História de Portugal como remeditação global do destino e devir colectivos, mas meras mantas de retalhos falsamente unidas por falsos fios de opostas ideologias, anteviu qualquer coisa nesse sentido. Os sessenta anos que, absurdamente, perpetuando o velho jogo de avestruz que jogamos com a nossa alma, nós arredámos da consideração séria da História, não são esse vácuo que os falsos patriotas gostavam que tivesse sido, mas também não são a mera continuação do nosso devir nacional. Historiograficamente, esta hipótese tem a seu favor o simples bom-senso e a realidade documental de um viver sem descontinuidade, bem pouco resistente até, como uma idealística visão do nosso passado se apraz em imaginar. O problema da independência nacional não tinha então o perfil que a historiografia romântica e nacionalista lhe atribuirá. Hoje, todos os escritores que nós celebramos dentro desses sessenta anos filipinos seriam, pura e simplesmente, colaboracionistas. A verdade é que não há na sua actividade literária sombra de má consciência. A vinculação política fazia-se em relação ao Estado (a Coroa) que tinha o seu domínio próprio, hierárquico e administrativo, mas não cultural; a vinculação orgânica fazia-se em relação à Pátria que não é ainda Nação,mas terra comum, gente comum que a vicissitude política não altera. Faria Sousa celebra em castelhano as glórias lusitanas, sem ver nisso contradição alguma, e o que é mais importante, sem que os espanhóis com elas se apoquentem. Na classe dirigente há uma oscilação de fundo entre o vínculo natal e os deveres de Estado, cujo estatuto político lhes parece normal. É nas camadas populares ou nos que estão mais próximos delas, que o vínculo imediato ao ser racional resiste, mesmo inconscientemente, à coexistência superficialmente pacífica de espanhóis e portugueses. Elas que têm o largo hábito do desamparo curtem segunda experiência de desamparados de rei próximo e aos poucos forjam uma relação diferente com a totalidade do ser racional. Nesses sessenta anos o nosso ser profundo mudou de sinal. Como portugueses esperámos do milagre, no sentido mais realista da palavra, aquilo que, razoavelmente, não podia ser obtido por força humana.A morte do padre Malagrida, um Vieira sem génio nem sorte, pôs termo (ou interrompeu) esse ciclo de sebastianismo activo que representou, ao mesmo tempo, o máximo de existência irrealista que nos foi dado viver; e o máximo de coincidência com o nosso ser profundo, pois esse sebastianismo representa a consciência delirada de uma fraqueza nacional, de uma carência, e essa carência é real. Das duas componentes originais da nossa existência histórica, desafio triunfante e dificuldade de assumir tranquilamente esse triunfo, aprofundámos então, sobretudo, a nossa dificuldade de ser, como diria Fontenelle, a histórica dificuldade de subsistir com plenitude política. Tornou-se então claro que a consciência nacional (nos que a podiam ter) que a nossa razão de ser, a raiz de toda a esperança, era o termos sido. E dessa ex-vida são Os Lusíadas a prova do fogo.O viver nacional que fora quase sempre viver sobressaltado,inquieto, mas confiado e confiante na sua estrela, fiando a sua teia da força do presente, orienta-se nessa época para um futuro de antemão utópico pela mediação primordial, obsessiva,do passado. Descontentes com o presente, mortos como existência nacional imediata, nós começámos a sonhar simultaneamente o futuro e o passado. Nunca se meditou a sério em actos tão significativos como os da invenção de falsos documentos pelos monges de Alcobaça para provar a nossa existência legal no passado, assim como, já depois da ressurreição, no labor incrível dos nossos juristas para justificar o nosso direito a um lugar ao sol entre os povos livres». In Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.

Cortesia Gradiva/JDACT