«(…) Se o for, será sobretudo pelo excesso de fixação numa temática que
subentende tudo quanto escrevi, mas que a ausência porventura terá reforçado.
De qualquer modo, não escrevi estes ensaios para recuperar um país que nunca
perdi, mas para o pensar, com a mesma paixão e sangue-frio intelectual
com que o pensava quando tíve a felicidade melancólica de viver nele como
prisioneirro de alma. Menos os escrevi ainda para me justificar de um amor
pátrio que não pertence ao género dos que se cantam ou descantam pedindo
recompensa. Uma Pátria não deve nada a ninguém em particular. Ela deve tudo a
todos. Nem a Camões, Portugal, que ele encadernou para a eternidade, devia
alguma coisa. Devia-lho o Rei a quem mecenaticamente fez apelo e lhe pagou como
entendeu e os tempos consentiam. Do que Portugal não lhe devia e o seu amor por
ela exigia, só ele mesmo se podia pagar pelas suas próprias mãos, confundindo
num só canto a errância pátria e a sua mortal peregrinação. Que mais alta
recompensa?
Vence, 25 de Abril de 1978. Psicanálise mítica do destino português
As nações, com a responsabilidade histórica da gente portuguesa, não podem
imobilizar-se extaticamente, nem devem iludir-se infantilmente; têm que
desentranhar sucessivamente da massa das suas tradições e aspirações um ideal
coerente com a conjuntura histórica, que exprima e defina o seu estar mudável
em concordância com o seu ser permanente. Joaquim Carvalho, Compleição do
Patriotismo Português (1953) Casos, opiniões, natura e uso, fazem que nos
pareça esta vida que não há nela mais que o que parece. Camões se a
História, no sentido restrito de conhecimento do historiável, é o horizonte
próprio onde melhor se apercebe o que é ou não é a realidade nacional, a mais
sumária autópsia da nossa historiografia revela o irrealismo prodigioso da imagem
que os Portugueses se fazem de si mesmos. Não nos referimos às simples
deformações de carácter subjectivo ou de natureza ideológica, não só por serem
inevitáveis, como por não arrastar com elas uma fatal transfiguração no sentido
desse irrealismo. O que visamos é mais largo e profundo, pois afecta na raiz a
possibilidade mesma de nos compreendermos enquanto realidade histórica. Em
lugar da autognose de uma realidade movente mas perfeitamente definida à qual
nos referimos com o nome Portugal, nós historiamos um ser perdido
de antemão e que milagre algum de dialéctica poderá reencontrar ao fim de uma
análise que começou sem ele. As Histórias de Portugal, todas, se exceptuarmos o
limitado mas radical e grandioso trabalho de Herculano, são modelos de robinsonadas:
contam as aventuras celestes de um herói isolado num universo previamente
deserto. Tudo se passa como se não tivéssemos interlocutor. (E esta famosa
forma mentis reflecte-se na nossa criação literária, toda encharcada de
monólogos, o que explica, ao mesmo tempo, a nossa antiga carência de fundo em
matéria teatral e romanesca). Esta situação não pode ser objecto de uma simples
referência de passagem. Reflecte a estrutura de um comportamento nacional que a
obra dos historiadores apenas generaliza e amplia. O que é necessário é uma
autêntica psicanálise do nosso comportamento global, um exame sem
complacências que nos devolva ao nosso ser profundo ou para ele nos encaminhe
ao arrancar-nos as máscaras que nós confundimos com o rosto verdadeiro». In
Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino
Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.
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