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«O
teu telefone toca, tu vês de onde vem o telefonema e sabes que não são boas notícias,
se fossem, esperavam até à consulta marcada para a semana seguinte. Tu sabes que
não são boas notícias, até porque tinhas tido um aviso prévio. E o olhar da A.,
uns dias antes, pelo FaceTime, a milhares de quilómetros de distância, não era tranquilo,
como de costume. Também não era dramático. Talvez apenas suficientemente preocupado
para antecipar o que não queres ouvir. Uns dias mais tarde: Pedro, não são boas
notícias, confirma-se: tem um tumor no pulmão. No estádio iii. O estádio iv é o
último. Ouves a frase como se a tivesses já ouvido. Ou talvez a tenhas imaginado.
Em sonhos? Ou nas noites que intermediaram os exames e este dia? Segue-se um
diálogo pragmático sobre passos a seguir, análises complementares, quadro
diagnóstico. Ouves tudo como se fosse a notícia mais óbvia do mundo. Desligas o
telefone, tinhas acabado de tomar o pequeno-almoço, e parece óbvio o que se segue:
um gim tónico. Pronto.
Foi o que se passou no dia 18 de Outubro
de 2016, por acaso o dia em que o meu filho completou 21 anos. Tento perceber a
atitude, confesso-me incapaz. Por muito menos, no passado, sofri muito mais.
Por quase nada, chorei como se não houvesse amanhã. E agora estou sentado no sofá
da sala, gim tónico na mão, a pensar que o pior e mais difícil vai ser contar à
mãe e ao meu filho (que ainda por cima está longe e vai saber desta mer… pelo Skype).
Nos dias seguintes, esse foi o pensamento recorrente mais doloroso. Esta má notícia
que vou ter de contar. O mensageiro é sempre culpado, neste caso acumula, dado que
também é vítima. Sou capaz de rir sozinho, imaginando uma empresa de comunicação
que faça esse trabalho por mim. Mas dura pouco. Tenho de contar, da melhor forma
possível, isto que me aconteceu. Más.
No dia seguinte, estava no hospital
a conhecer uma mulher sorridente, forte, simpática, mas com a atitude que anos
e anos de jornalismo me ensinaram a distinguir: frontal. Sem medo. Olhos nos
olhos. Nessa primeira consulta, a dra. M., em breve apenas M., pega descontraidamente
numa folha branca e numa clássica Bic e começa a desenhar os meus pulmões, para
explicar quão grave é a situação. Antes, perguntara-me se era dos que
aguentavam a verdade ou preferiam não saber. Respondi que queria saber, mesmo
que pudesse não aguentar a verdade. Ela olhou para mim, sorriu e tranquilizou-me:
aguenta, acho que aguenta. Senti-me confortado. Ou pelo menos bem enganado. Vamos
lá. E a dra. M. começou a desenhar o que seria, previsivelmente, um final à vista.
Para ser sincero, ouvi tudo como se me estivesse a falar de outra pessoa.
Parecia que repentinamente tinha ganho uma distância improvável sobre o que
dizia e o que, passe a redundância, me dizia respeito. Aquilo não devia ser comigo.
Será isto a maturidade? A estupidez
pura de quem enterra a cabeça na areia? Ou será apenas o primeiro impacto de
algo que, estou consciente, vai viver comigo daqui para a frente, sejam meses ou
anos, e em breve cairei na realidade e serei, como Roger Vailland escreveu, o
homem mais infeliz do mundo?» In Pedro Rolo Duarte, Não Respire, Letras
& Diálogos, Manuscrito, Editorial Presença, 2018, ISBN 978-989-887-150-3.
Cortesia de Manuscrito/EPresença/JDACT