As
Lágrimas do Papa
«(…) A
refeição havia sido animada, calorosa e ruidosa. O vinho deixara alguns espíritos
exaltados. As vozes elevavam-se. Por vezes, irrompiam algumas risadas.
Sobretudo as de um irmão gordinho, de faces rosadas, um tabelião que não
cessava de fazer brindes. Descobrindo vários pontos em comum, Francis Marlane e
Didier Mosèle entrincheiraram-se numa conversa particular, apesar do burburinho
da sala. Vinte minutos depois, Marlane exclamou: os rolos do mar Morto? Está
trabalhando neles? Achei que era especialista em manuscritos medievais e outros
palimpsestos! Nem todos são rolos de cobre. Em Khirbet Qumran também foram encontrados
pergaminhos... Alguns com três quartos roídos pelos ratos, que neles afiaram os
dentes! Metros e metros de manuscritos que prefiguram os Evangelhos, respondeu
Mosèle. E o seu trabalho, nesse caso? A Fundação na qual trabalho, sob a tutela
da Escola Bíblica de Jerusalém, me encarregou da restauração de dois rolos
numerados, 4Q456-458, explicou Mosèle. Datados pelo geneticista Henri
Squaller da universidade Rockefeller, esses pergaminhos teriam sido redigidos
algumas dezenas de anos depois da morte presumida do Cristo; não podemos ter
cem por cento de certeza da data exacta. Eles foram descobertos no famoso sítio
do mar Morto e, inegavelmente, despertam um interesse inédito. Estão incluídos
na longa sequência de decodificação desse tesouro enigmático, iniciada em 1947,
quando Qumran ainda estava sob jurisdição palestina.
É como se me falasse
do Graal, Didier! É muito sonhador, Francis... Eles não passam de longas
litanias religiosas ou de códices severos, redigidos pelos austeros essénios no famoso
mosteiro de Qumran. Abandonei por um tempo os trabalhos que fazia na restauração
de um magnífico livro de salmos do século XIV, para me dedicar a essa tarefa. E
não me arrependo! Hertz dava a impressão de se interessar por uma discussão
entre alguns irmãos iniciada à sua direita, a respeito das últimas decisões do
Convento.
Na realidade, acompanhava a conversa entre Mosèle e
Marlane, absorvendo cada palavra. Se estiver interessado, propôs Mosèle, eu o
convido a visitar o meu departamento esta semana. Li os seus livros; talvez
pudesse dar-me uma ajuda. O aval de um especialista nas Sagradas Escrituras, vai
alegrar os meus directores. É mesmo verdade? Leu os meus livros? Li, sim. Não
concordo necessariamente com todas as suas teorias, mas senti um grande prazer
em estudá-las. Algumas das suas interpretações rodaram por toda a Fundação e,
aliás, você tem alguns admiradores por lá.
Quanto a mim, não
compartilho das suas hipóteses... Elas exalam um odor de enxofre que, em outros
tempos, o teriam mandado directo para a fogueira. Marlane enrubesceu e ergueu-se
na cadeira para reagir, enumerando as palavras: não são hipóteses! São
certezas... Estou dizendo: certezas! Em seguida, depois de um longo momento de
reflexão, ele acrescentou: Jesus não era esse carpinteiro pobre que
representam, barbudo, louro e de pele branca! Acha realmente que o Filho de
Deus poderia parecer-se com um vulgar actor californiano de filmes de TV? Jesus
tinha a pele morena, cabelos castanhos, e nasceu numa família relativamente
rica! Ah, é claro, com isso, o símbolo vai por água abaixo, não é?
Surpreso de que um
homem com a inteligência de Marlane, que acreditava num Deus revelado, pudesse
fazer tais afirmações, Mosèle continuou a provocá-lo durante toda a ceia.
Divertia-se quando Marlane se exaltava, tentando demonstrar a legitimidade das
suas teorias a respeito da família, dos filhos, do irmão do Cristo... Marlane
havia sido um cristão fervoroso antes de entrar para a franco-maçonaria. Quanto
a mim, disse Mosèle, também posso vangloriar-me de possuir um bom conhecimento
dos Evangelhos, o que devo aos óptimos padres de uma escola particular de
Amiens, na qual passei a minha adolescência. João, Lucas, Mateus e Marcos me
distraíram muito e permitiram que eu me evadisse através da imaginação. Na época,
eu considerava as façanhas de Jesus uma grande e magnífica epopeia. Seis horas
de catecismo por semana! Preciso dizer mais, Francis?» In Didier Convard,
O Triângulo Secreto, As Lágrimas do Papa, Editora Bertrand Brasil, 2012, ISBN
978-852-861-550-0.
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