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«(…) Sentada no banco junto à
cama, de mãos cruzadas sobre o regaço, Briolanja escutava em silêncio as
palavras sofridas da sua adorada dama. A verdade, porém, minha boa amiga, é que
voltei a apaixonar-me. Eu sei, senhora. Como é que sabes? Foram as estrelas que
to disseram?, perguntou, ansiosa, com um sorriso aberto de esperança e de
regalo. Briolanja Mendes baixou os olhos na direcção das mãos mantidas sobre o colo,
encolheu os ombros e disse: fui eu que a vi, senhora. Leonor Teles, que estava
sentada na beira da cama, deu um repentino salto, pôs-se de pé e perguntou: viste
o quê? Vi a senhora com o filho do alcaide ao pé da nascente..., respondeu num tom
de voz carregado de receio. Sem saber como agir, a jovem cerrou os olhos,
voltou a sentar-se, escondeu a cabeça entre as mãos e disse: comportaste-te
como uma mulher aleivosa e vil, e porque não quero gente aleivosa e vil na
minha câmara ordeno-te que saias já pela mesma porta por onde entraste. Sai... Senhora...
Nem mais uma palavra, gritou,
desesperada. Um forte rebate dos sinos da igreja interrompeu de súbito o curso
de memórias de Briolanja Mendes, que o alternava com rezas, maus-olhados e
agoiros. Tinha chegado a hora do casamento. Duzentos convidados, a maioria
proveniente de localidades do Norte, iam testemunhar finalmente a aliança do
morgado de Pombeiro com a sobrinha do conde de Barcelos. A cerimónia, celebrada
ao ar livre por ser esse um respeitável costume, começou com a entrada de dois
cavaleiros no terreiro do templo, armados de lanças, de excelentes arreios e de
ricas armaduras. A eles competia dar início à festa, com a realização de um
torneio que divertisse os convidados e ajudasse os noivos a descontrair das emoções
em que se encontravam. Só que, azar de todos, mas principalmente de um dos
contendores, a justa foi suspensa à primeira investida das bestas por o cavaleiro
mais alto e mais forte ter sofrido um golpe profundo na perna direita. Os
convidados, que assistiam ao espectáculo em tribunas e palanques instalados
junto à vedação da teia, manifestaram-se de tal modo desconsolados com o fim
abrupto do torneio que o conde de Barcelos, atento à algazarra que entretanto
se gerou, propôs adiar a cerimónia por mais uma ou duas horas e chamar dois
novos moços para continuarem o divertimento. Mas a pronta intervenção de uns
tantos clérigos, de alguns lentes e do próprio emissário d'el-rei Fernando I acabou
por impedir que João Afonso Telo levasse por diante a disparatada proposta. Até
mesmo o arcebispo do Porto, Álvaro Anes, que haveria de presidir ao sacramento e
abençoar a união, chegou a intervir no caso ao deixar implícita a ameaça de que
os noivos ficariam por casar se o atraso do ritual religioso se consumasse por
causa da realização do duelo. Esclarecido o assunto e ultrapassado a
contragosto de muitos o problema, João Afonso Telo chamou de parte o notário
para lhe pedir em segredo que redigisse o contrato de bens e de partilhas dos
consortes assim que o arcebispo desse por concluída a parte litúrgica do
casamento de bênção. Ao que lhe haviam dito, o clérigo tinha o gosto e a mania
de tecer várias considerações sobre o dever dos noivos e a importância social
do matrimónio sempre que era convidado a presidir a tais cerimónias. Calar
assim o homem que o humilhou à frente dos convidados com a ameaça de não abençoar
o conjúgio se fosse por diante um novo duelo foi uma vitória para João Afonso
Telo. Uma vitória e uma vingança, confirmadas posteriormente e no momento
certo.
Sob um apaziguador silêncio,
apenas quebrado pelos ataques de tosseira das testemunhas, Leonor Teles Menezes
e João Lourenço Cunha juraram enfim cumprir-se no amor e na fidelidade. Para a
noiva, no entanto, mais difícil do que proferir essa jura foi ouvir da boca do
futuro marido a expressão que ela menos gostaria de escutar, Recebo-te por minha
esposa, ou mais doloroso ainda o dito por ela mesma, Recebo-te por meu
esposo. Ao dizê-lo, Leonor, já então morgada de Pombeiro, desprendeu um
aflito soluço e começou a chorar. Na casa do conde, debruçada sobre a cama,
Briolanja Mendes chorava a essa hora também por ela, e com ela.
Quando regressou a Lisboa de uma
longa caçada por terras de Arraiolos e Vila Viçosa, el-rei Fernando I mandou
chamar ao Paço o fidalgo Afonso Peres Sousa para saber como correra o casamento
da sobrinha do conde de Barcelos com o morgado de Pombeiro. Tinham-se passado já
duas semanas sobre a data do consórcio mas isso não havia retirado ao rei o interesse
em conhecer a opinião do emissário sobre o modo como fora recebido por João
Afonso Telo e tomado pelos seus convidados. Mas não era tanto da cerimónia do
casamento propriamente dita que o monarca queria um relato particularizado; o
que ele desejava, isso sim, era que o fidalgo lhe contasse como fora acolhido
pelo conde e lhe revelasse em pormenor as conversas que ouvira aos convidados, no
caso de as ter havido, sobre a situação do país, da corte e a prática política
do seu governo». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN
978-989-555-113-2.
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