«(…) Ignazio, que assistia à cena
com crescente estupor, aproximou-se do velho e, sem desviar os olhos dele,
tomou-lhe a mão e prostrou-se a seus pés. Mestre Galib, é o senhor mesmo? O
ancião sorriu, arqueando as sobrancelhas muito brancas. Sim, meu filho, eu
mesmo. Fitando-o maravilhado, o mercador lembrou-se do seu primeiro encontro com
o mestre. Corria o ano de 1180 e, embora ainda fosse menino, Ignazio fora admitido
na Escola de Toledo. Para seu pai, o acontecimento era motivo de profundo
orgulho, pois naquele lugar estava sendo realizada a obra monumental de
tradução dos manuscritos vindos do Oriente. O mestre Galib, na época, um
brilhante rapaz de 25 anos, orientava os alunos e auxiliava o erudito Gerardo
Cremona, instalado em Toledo precisamente para traduzir para o latim os
tratados dos filósofos árabes e gregos. Galib ocupara-se do jovem Ignazio e
insistira para que fosse iniciado no estudo do latim, reconhecendo nele uma
inteligência pouco comum. Gerardo Cremona estava na época ocupado demais para
notar o menino, mas algum tempo depois ele o convocou, fazendo dele um dos seus
discípulos predilectos. Isso só aconteceu graças à mediação de Galib. Pensei
que estivesse morto, admitiu Ignazio, esmagado pelas recordações. Ninguém sabia
do seu paradeiro. Apenas me ausentei de Toledo, respondeu o magister. Continuei
ensinando por mais alguns anos, depois da morte de Gerardo Cremona, e por fim
resolvi colocar-me a serviço do rei Fernando. Sorriu, mostrando um imenso
cansaço, todo interior. O Senhor quis brincar um pouco com este pobre velho,
presenteando-o com uma longevidade imprevista...
Ignazio tinha inúmeras perguntas
a fazer, mas Galib antecipou-se: Não pode recusar esta missão, meu filho. Os seus
serviços são de importância vital. Explique-se, magister. Não me refiro às
informações que o bispo Folco alega ter obtido durante um exorcismo. O velho
ergueu o indicador ossudo. Já ouvi falar do conde de Nigredo, da fama que o
cerca. É um adversário temível, um alquimista. Por isso é necessário que
acompanhe messer Filippo até Toulouse e faça indagações sobre o desaparecimento
da rainha Branca. Sei muito bem o que estou dizendo. Foi, por muito tempo, o
melhor discípulo de Gerardo Cremona, versado, sobretudo, nas ciências
herméticas e na exploração das coisas ocultas. Sei também que resolveu adoptar
a profissão de mercador para aprofundar esses conhecimentos durante as suas
longas viagens. Não negue. Um alquimista... Ignazio estava de novo impassível.
Então foi o senhor quem sugeriu o meu nome para esta tarefa. Sim. O ancião
cruzou os braços e o seu corpo diminuto pareceu diminuir ainda mais por baixo
das dobras do hábito. O rei Fernando pediu-me que indicasse o homem certo, e
pensei imediatamente em vós. Com muito gosto, eu iria em seu lugar, mas estou
velho demais para enfrentar semelhante desafio. E então, qual é a sua resposta?
O mercador voltou-se para Uberto
e Willalme, perscrutou os seus rostos assustados e respondeu por fim: aceito o
encargo. Esboçou um meio sorriso. Afinal de contas, acho que não tenho o
direito de desobedecer a uma ordem do rei. De facto, interveio Lusignano, que
ouvia com o máximo interesse. Partiremos amanhã mesmo. Esta noite, descansarão
no castelo, num aposento ao lado do torreão. Óptimo. A expressão de Fernando
III se descontraíra. Agora que a questão está resolvida, podemos preparar-nos
para a ceia. Bateu palmas. Naturalmente, mestre Ignazio, e seus companheiros
são nossos convidados. Assim falando, o monarca se pôs em pé e atravessou a
sala na direcção da porta, enquanto um cortejo de nobres se atropelava para
segui-lo. Em vez de juntar-se àquela gente, Ignazio seguiu pela lateral da
sala. Não gostava de compor o séquito de ninguém. Nesse momento, uma mão ossuda
pegou-o pelo braço. Siga-me, filho, disse Galib. Conheço um atalho para
chegarmos à sala de refeições.
A ceia foi servida no andar
superior do torreão, num salão em cujo centro se via uma lareira cilíndrica em
torno da qual corria uma longa mesa em forma de ferradura. Ignazio observou os
comensais antes de concentrar a atenção em Galib, que se sentara à sua frente
com ar inquieto. Uberto e Willalme ladeavam-no. Na esperança de que o magister
estivesse disposto a fazer revelações, o mercador tomara lugar na extremidade
esquerda da mesa, junto a fidalgotes distraídos e cavaleiros de baixa condição.
Ali as suas palavras perdiam-se no meio do vozeirão de fundo enquanto o rei
Fernando, sentado ao centro da mesa, conversava com Filippo Lusignano e um
frade dominicano de aspecto sombrio. Magister, o que o preocupa?, perguntou o
mercador. Mais tarde lhe conto, respondeu Galib, esforçando-se para aparentar tranquilidade.
Agora, pense em se divertir. Conte-me sobre si e os seus companheiros... Ignazio
narrou-lhe as viagens que fizera no Oriente, no litoral da África e em vários
países europeus. Em seguida, contou-lhe sobre a rocambolesca peregrinação que
empreendera no Caminho de Santiago durante o Verão de 1218. Nesses momentos
difíceis é que conhecera Filippo Lusignano, a quem achou ao mesmo tempo cortês
e misterioso». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de
Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.
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