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Claro que, com tudo isto, o povo andava muito intrigado; ainda por cima, o monarca
preferiu recorrer às rendas e à cunhagem de nova moeda e não convocou qualquer reunião
de cortes, de maneira a não ter de explicar a mais ninguém o que pretendia fazer
e a evitar os habituais protestos dos procuradores concelhios, sempre que se lançavam
impostos para mais uma campanha militar. O tempo foi correndo, devagar, os infantes
mostravam-se entusiasmadíssimos (organizaram em Coimbra e em Viseu, entre as vésperas
do Natal e o dia de Reis, divertimentos e justas notáveis) e, por alturas do São
João de 1414, o rei decidiu finalmente convocar uma reunião do seu conselho
para Torres Vedras, de maneira a obter o acordo dos apoiantes mais fiéis e a fixar
a data da expedição. João Gomes Silva esteve presente nesta reunião, ao lado d'el-rei
e dos infantes, do condestável, dos mestres das quatro ordens militares
(Cristo, Santiago, Avis e Hospital), do marechal Gonçalo Vasques Coutinho, de Martim
Afonso Melo (homem reputado pelo seu conhecimento das tácticas militares e autor
de um Livro da Guerra) e de alguns outros senhores e fidalgos. O monarca
abriu a sessão, lembrou a vitória militar decisiva obtida em São Jorge a 14 de Agosto
de 1385, apresentou o projecto e pediu o conselho dos que ali estavam, quase todos
homens bravos e que o acompanhavam desde o momento fundador daquela dinastia.
Conforme o combinado, Nuno Álvares falou logo a seguir, para inclinar a balança
a favor de uma decisão favorável, e mostrou aquele feito como pertencendo ao serviço
de Deus. Os infantes falaram depois; a seguir, todos os restantes foram chamados
a dar a sua opinião e ninguém ousou contestar a ideia de atacar Ceuta. Pelo
contrário, disse-me João Gomes, eu mesmo me pus de pé e declarei perante todos:
Senhor, não sei mais que diga, senão ruços além! E isto falou o bom do alferes-mor
porque todos os que ali estavam tinham já as cabeças cobertas de cabelos brancos,
após tantas aventuras e perigos vividos em conjunto durante mais de 30 anos de guerras...
Todos se riram desta lembrança tão certeira, e el-rei encerrou a sessão com o seu
plano já aprovado.
Programada a partida para o São João
seguinte, o rei João I tratou de enviar o emissário Fernão Fogaça ao duque da Holanda,
com o pretexto de o desafiar para uma guerra que serviria, pretensamente, para os
portugueses se vingarem de alguns roubos e danos que certos navios daquele duque
tinham provocado no mar a mercadores lusitanos. Com isto, el-rei queria apenas desviar
as atenções do seu verdadeiro objectivo: o ataque a Ceuta. O duque entrou no jogo
e, apesar da apreensão dos seus conselheiros, que temiam a fama militar portuguesa
e que tinham tido notícia, por mercadores de Bruges, da preparação de uma frota
em Portugal, fingiu aceitar o desafio, fazendo-se prestes para esta guerra de
fantasia.
Enquanto isso, seguiram cartas e
mensageiros de João I para a Galiza, para a Biscaia, para a Inglaterra e para a
Alemanha, com o objectivo de se fretarem navios para transportar as tropas para
o Norte de África. Os infantes Pedro e Henrique foram nomeados os principais capitães
da armada, a seguir ao rei, e decidiu-se que as gentes das comarcas da Beira, de
Trás-os-Montes e de Entre Douro e Minho embarcariam no Porto e as das restantes
províncias em Lisboa. O infante Henrique, sempre muito activo, começou a juntar
os coudéis e os anadéis da Beira e de Trás-os-Montes e, com base nos cadernos
dos alardos reunidos pelo escrivão da puridade, mandou apurar toda a gente em causa;
o conde de Barcelos, Afonso, fez, o mesmo no Minho, enquanto o infante Pedro se
encarregava da mobilização das gentes da Estremadura, de Entre Tejo e Guadiana e
do Algarve, que haveriam de concentrar-se na capital». In João Gouveia
Monteiro e António Martins Costa, 1415, A Conquista de Ceuta, Manuscrito, 2015,
ISBN 978-989-881-804-1.
Cortesia de Manuscrito/JDACT