sexta-feira, 8 de junho de 2018

A Religiosa. Denis Diderot. «Como o véu realça a brancura da sua pele! Que bem lhe assenta a touca! Como lhe arredonda o rosto! Como lhe destaca as faces!»

Cortesia de wikipedia

«(…) Enquanto tudo isto se passava, acrescentou: mas por que não faz uma coisa? Oiça e, sobretudo, não diga a ninguém que lhe dei este conselho. Conto com a sua discrição absoluta pois não quero, por nada deste mundo, que haja algo que possam reprovar-me. Que é que lhe pedem? Que tome o hábito? Bem, e por que não o toma? A que é que se compromete? A nada, só a viver dois anos entre nós. Ninguém sabe se viverá ou morrerá; dois anos é tempo suficiente. Podem acontecer muitas coisas em dois anos... Acompanhou estas frases insidiosas com tantas carícias, tais protestos de amizade e tão doces mentiras; e eu sabia onde estava, mas não sabia para onde me levariam, e foi assim que me deixei convencer. Escreveu, então, ao meu pai. Uma carta magnífica; isso, fazem-no como ninguém: a minha aflição, a minha dor e os meus protestos eram ali descritos tão fielmente que, garanto-lhe, uma jovem mais hábil do que eu ter-se-ia enganado também. No entanto, terminava comunicando o meu consentimento. Com que celeridade se preparou tudo! Fixou-se o dia, fizeram-se os meus hábitos e chegou o momento da cerimónia sem que, ainda hoje, eu possa perceber o menor intervalo entre todas estas coisas.
Esquecia-me já de lhe contar que vi meu pai e minha mãe, que tentei tudo para os comover e que ambos foram inflexíveis. Foi o padre Blin, doutor na Sorbonne, quem me exortou e o senhor bispo de Alepo quem me deu o hábito. Esta cerimónia não é, já de si, alegre; naquele dia, foi uma das mais tristes. Apesar das religiosas tentarem suster-me, vinte vezes senti os meus joelhos fraquejarem e estive a ponto de cair nas grades do altar. Não ouvia nem via nada. Tinha tonturas. Levavam-me e eu ia; faziam-me perguntas e respondiam por mim. No entanto, esta cruel cerimónia chegou ao fim, toda a gente se retirou, e eu permaneci no meio do grupo a que acabava de unir-me. As minhas companheiras rodeavam-me, abraçavam-me e diziam: veja, irmã, que bonita que está. Como o véu realça a brancura da sua pele! Que bem lhe assenta a touca! Como lhe arredonda o rosto! Como lhe destaca as faces! Como o hábito lhe realça a figura, os braços!... Eu ouvia-as, simplesmente, pois estava aflita. No entanto, tenho de reconhecer que, já sozinha na minha cela, recordei os elogios e não pude abster-me de os comprovar no meu espelhinho; pareceu-me que não tinham exagerado. Há certas honras que fazem parte deste dia. Exageraram-nas para mim, mas mal me dei conta; no entanto, pareciam acreditar no contrário e diziam-mo, apesar de estar claro que nada era assim. Ao entardecer, depois das orações, a superiora veio à minha cela. Verdadeiramente, disse-me depois de me ter contemplado uns instantes, não sei por que mostra tanta repugnância por esse hábito. Fica-lhe às mil-maravilhas, está encantadora. A irmã Susana é uma linda religiosa e isso só fará que gostem ainda mais de si. Vamos, ande um pouco... Não se mantém suficientemente direita; não tem de estar assim curvada... Compôs-me a cabeça, os pés, as mãos, o corpo, os braços; foi quase uma lição de Marcel sobre os encantos monásticos, pois cada estado tem os seus. Depois sentou-se e disse-me: está bem. Agora, vamos falar mais seriamente. Ganhámos dois anos; os seus pais podem mudar de opinião e a menina, mesmo, pode querer ficar aqui quando eles vierem buscá-la. Isso não é impossível. Não acredita! Esteve muito tempo entre nós, mas ainda não conhece a nossa vida; sem dúvida, tem as suas penas mas também tem as suas doçuras... Já pode imaginar tudo o que disse do mundo e do claustro; está escrito em todo o lado e sempre da mesma forma. Graças a Deus, deram-me a ler a abundante literatura onde os religiosos elogiam o seu estado, que tão bem conhecem e tanto detestam, contra o mundo que amam e difamam sem conhecer.
Não lhe contarei em detalhe o meu noviciado. Se a sua austeridade tivesse sido inteiramente respeitada, eu não teria resistido. E, no entanto, é o período mais doce da vida monástica. Uma madre de noviças é a irmã mais indulgente que se pode encontrar. O seu propósito é ocultar-nos todos os espinhos da vida religiosa. É toda uma lição da mais subtil e bem preparada sedução. É ela que aumenta as trevas que nos rodeiam, quem nos embala e nos adormece, nos impõe respeito e nos fascina. A nossa dedicou-se a mim, particularmente. Não creio que exista uma alma jovem e sem experiência que possa resistir a esta arte funesta. O mundo tem os seus abismos, mas não creio que se chegue a eles por uma encosta tão suave. Se eu espirrava duas vezes seguidas, dispensavam-me do ofício, do trabalho e da oração; habituei-me depressa a levantar-me cada vez mais tarde; a regra do convento suspendia-se para mim. Imagine, senhor, que havia dias em que suspirava pelo momento de sacrificar-me. Não há história desagradável do mundo de que não nos falem; deformam-se as verdadeiras e fazem-se com elas enormes falsidades, e logo tudo são louvores sem fim e acções de graças a Deus, que nos protege destas aventuras humilhantes». In Denis Diderot, A Religiosa, 1796, tradução de J. Guinsburg, Editora Perspectiva, 2009, ISBN: 978-852-730-878-6
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Cortesia de E Perspectiva/JDACT