A
Primeira Cruz. Dezembro de 1107
«A
neve havia chegado com a noite, pesada, espessa, cobrindo rapidamente as ruas e
os telhados. Das chaminés, elevavam-se finas volutas de fumaça agitadas pelo
vento. No segundo andar de uma casa alta, uma luz filtrava através dos entalhes
de uma veneziana de madeira. Num pequeno quarto da água-furtada, um homem de
uns quarenta anos escrevia num pergaminho lenta e calmamente, esforçando-se
para formar bem as letras. Um braseiro aquecia o quarto cheio de rolos e
manuscritos; uma lamparina a óleo em cima de uma arca espalhava uma luz
alaranjada que dançava com leve corrente de ar. O escritor usava roupão grosso
e mitenes. A parte frontal da cabeça era calva; os cabelos que restavam,
longos, louros e brancos, caíam pelo pescoço. Os pés estavam apoiados num
banquinho cuidadosamente trabalhado. Adornando o anular da mão direita, havia
um anel gravado com uma pedra vermelha, que fragmentos de luz faziam brilhar de
quando em quando de maneira fugidia.
Concentrado, sereno, ele não
parava de escrever no papel velino grosso. Redigia as suas memórias. A história
extraordinária de cinco cavaleiros que haviam partido três anos antes, em busca
do mais improvável dos mistérios... Cinco irmãos unidos por um indescritível
Segredo. Ele chamava-se Arcis Brienne, companheiro de Hugues Champagne, de Hugues
Payns, de Geoffroy Saint-Omer e de Basile Harnais. E ele lembrou-se da terra
ocre e escaldante de Jerusalém, do céu estrelado, dos odores apimentados... Do
povoado dos leprosos, do Túmulo. O Túmulo! A mão tremeu um pouco com essa
lembrança. Um pouco. Pois havia aprendido a controlar as emoções, obrigando a
mente e o coração a não se deixarem invadir por pensamentos que, na época, o
teriam abalado. Agora, ele sabia. Descobrira a verdade, a mentira da Igreja. A impostura...
Por isso, escrevia, debruçado sobre a mesa, com os olhos cansados que se
franziam a cada palavra nova e o rosto, que se tornara gordo, petrificado como
uma máscara de cera.
Ele já fora magro e anguloso. O
tempo havia coberto os seus ossos de gordura, o que lhe dava o aspecto de um
senador romano. Por trás das venezianas, a neve abafava qualquer ruído, por
menor que fosse. Até o vento estava mudo. Esse pesado silêncio convinha a Arcis
Brienne, que se abandonava às recordações. Elas impunham-se por si mesmas,
precisas como nos primeiros dias. Os seus pensamentos não podiam se dirigir a
Deus, mesmo que quisesse rezar naquele momento. A sua alma estava vazia, casca
seca que perdera a sua seiva na expedição à Terra Santa. Uma alma morta... Os
restos de uma fé antiga e fervorosa. Por isso, ele escrevia, por medo de que,
um dia, a memória fraca esquecesse os despojos de um homem jovem, com furos nos
punhos e nos pés e o flanco ferido... Escrevia para si mesmo. Isso o
tranquilizava um pouco. Ele escrevia... Esforçado e metódico, lembrando as
quatro letras que os romanos haviam traçado numa cartela em cima da cruz
daquele que se fez passar por Cristo: INRI (Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum... Jesus de Nazaré, rei dos
judeus.
Mas Arcis Brienne, assim como os
seus quatro companheiros, agora sabia que esse acrónimo escondia uma mensagem
oculta cuja revelação poria abaixo os fundamentos da Santa Igreja. Dissimulada
sob esse vocábulo estava a Chave do Conhecimento. A Equação da imortalidade.
O vulto avançava na cumeeira do
telhado da casa de Arcis Brienne, uma forma tornada indefinida pela neve e pelo
vento e transformada por uma larga capa em imensa ave de rapina. Era, de facto,
com o que se parecia essa presença ágil, desafiando o equilíbrio e enfrentando
as telhas cobertas de gelo. Um capuz dissimulava o seu rosto. Um machado estava
preso à sua cintura. Era um fantasma na sombra, voando de uma parte à outra do
telhado, segurando-se numa chaminé, deslizando ao longo de uma das calhas da
fachada que dava para o pátio interno da casa, pulando na sacada de uma grande
janela fechada por uma veneziana (complemento da janela) de madeira. Nesse
momento, parou por um instante, recuperou rapidamente o fôlego e tirou um punhal
da bainha pendurada do lado esquerdo da cintura. E, então, começou a arrombar a
fechadura da veneziana. Em menos de um minuto, conseguiu forçar a lingueta, que
cedeu sem ruído». In Didier Convard, O Triângulo Secreto, Os Cinco Templários de Jesus, 2006,
Editora Bertrand Brasil, 2013, ISBN 978-852-861-663-7.
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