Catarina
Ataíde. Paço Real de Almeirim. 5 de Outubro. 1548
«(…) Contou-me a infanta dona
Maria, cuja cultura não poderá ser contestada, que o auto trata da resignação
do velho rei da Síria, Seleuco. Acaba ele por ceder uma das suas esposas ao
filho e herdeiro, pois que este está perdidamenre apaixonado pela madrasta. E
há pior: parece que Luís Vaz no prelúdio menciona uma certa Catarina Real. Dona
Maria repetiu-me a deixa tal como a ouviu: e entra logo Catarina Real com
uns poucos de parvos numa joeira; e semeá-los-á pela casa, de que nascerá muito
mantimento de riso.
Eu própria tremi. Luís Vaz tinha
dado um passo arriscado. Todas as que ali estávamos reunidas na sala, sobre o Terreiro,
sabíamos que o monarca João III por muito tempo acreditara poder vir a casar-se
com a terceira mulher de seu pai, a bela Leonor de Áustria, mãe da infanta dona
Maria. E como era galante! João III, para onde quer que fosse, fazia-se sempre
acompanhar do retrato de dona Leonor de Áustria, pintado por Joos van Cleve.
Sendo Leonor mãe da infanta dona Maria, o retrato fazia já parte da mobília. Era,
de facto, de uma beleza invulgar: rosto esguio e olhos bem latinos, cor de
amêndoa, testa alta e a pele..., de uma alvura sem par. Ainda antes de Manuel
I, seu pai, se casar em terceiras núpcias com dona Leonor de Áustria, já João a
desejava para si. Tai não sucedeu e foi dona Catarina a desposá-lo, uma segunda
e remota escolha. Tenho muita consideração e respeito por dona Catarina. A
pobre foi criada, no Convento de Tordesilhas, por uma mãe às portas da loucura.
Cresceu cosida com as saias de Joana, a
Louca nas sombras geladas daquele hospício e só viu a luz do Sol aos
dezassete anos, quando o irmão, Carlos V, negociou o seu casamento com o Rei de
Portugal. Muito sã de espírito e robusta de corpo era Sua Majestade para o
que tinha passado, ainda mais tendo visto morrer os filhos, um por um. Só João
Manuel vivia ainda. Não era, pois, de estranhar a tremura que levava nas mãos,
o tom baço da pele e os humores melancólicos ou enraivecidos que a vinham
tomando.
Não vejo tal
afronta nas intenções do poeta, Alteza, esse assunto particular já se deu há um
ror de anos, nem Luís Vaz era nascido..., desculpou-o Paula Vicente. Tenho para mim que o poeta não quis outra coise
senão imitar os clássicos, fazer renascer os gregos e os romanos, como dita a
moda. E sabeis bem que a infanta dona Maria não morre de amores por ele. Dona Catarina
cerrou os lábios com força e arqueou as sobrancelhas. Reparei que ostentava uma
gargantilha de várias fiadas de pérolas com um enorme rubi pendente. Vingava
agora na profusão de jóias a míngua do Convento de Tordesilhas. Corpulenta e
pesada como andava, foi penosamente que se levantou do estrado. Pousou o bordado
numa almofada de seda e, seguida pelo seu Bejayo, pôs-se a caminhar pela
sala, para trás e para diante, como fera enjaulada. De quando em vez parava,
arquejante, saltando-lhe os olhos das pinturas de Jorge Afonso e Gregório Lopes
para os novos guadamecis com cenas de caça que enfeitavam as paredes. Ganhava
tempo e, quando assim era, o melhor era prepararmo-nos para o pior. Calámo-nos
todas.
Não me interessa ouvir-te! Luís
Vaz ridicularizou-me, desrespeitou-me, usou os dramaturgos antigos com a firme
intenção de me desafiar, reacendendo os meus fantasmas. Escutai esta deixa: meu
pai era clérigo, e os clérigos sempre chamam aos filhos sobrinhos; e daqui me
ficou a mim, ser filho de meu tio. Acaso a achais galante a apropriada?
Pois a mim não me deu vontade alguma de rir. Não me bastava assistir à morte prematura
de toda a minha família, não me bastava ter de enfrentar este tempo conturbado
de falta de fé, com as blasfémias de Lutero, não me bastava a incerteza da sucessão
do Reino, para ter ainda de me sujeitar a semelhante desfaçatez! Com franqueza,
senhoras!» In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN
978-989-741-488-6.
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