quinta-feira, 21 de junho de 2018

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «Não vejo tal afronta nas intenções do poeta, Alteza, esse assunto particular já se deu há um ror de anos, nem Luís Vaz era nascido..., desculpou-o Paula Vicente»

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Catarina Ataíde. Paço Real de Almeirim. 5 de Outubro. 1548
«(…) Contou-me a infanta dona Maria, cuja cultura não poderá ser contestada, que o auto trata da resignação do velho rei da Síria, Seleuco. Acaba ele por ceder uma das suas esposas ao filho e herdeiro, pois que este está perdidamenre apaixonado pela madrasta. E há pior: parece que Luís Vaz no prelúdio menciona uma certa Catarina Real. Dona Maria repetiu-me a deixa tal como a ouviu: e entra logo Catarina Real com uns poucos de parvos numa joeira; e semeá-los-á pela casa, de que nascerá muito mantimento de riso.
Eu própria tremi. Luís Vaz tinha dado um passo arriscado. Todas as que ali estávamos reunidas na sala, sobre o Terreiro, sabíamos que o monarca João III por muito tempo acreditara poder vir a casar-se com a terceira mulher de seu pai, a bela Leonor de Áustria, mãe da infanta dona Maria. E como era galante! João III, para onde quer que fosse, fazia-se sempre acompanhar do retrato de dona Leonor de Áustria, pintado por Joos van Cleve. Sendo Leonor mãe da infanta dona Maria, o retrato fazia já parte da mobília. Era, de facto, de uma beleza invulgar: rosto esguio e olhos bem latinos, cor de amêndoa, testa alta e a pele..., de uma alvura sem par. Ainda antes de Manuel I, seu pai, se casar em terceiras núpcias com dona Leonor de Áustria, já João a desejava para si. Tai não sucedeu e foi dona Catarina a desposá-lo, uma segunda e remota escolha. Tenho muita consideração e respeito por dona Catarina. A pobre foi criada, no Convento de Tordesilhas, por uma mãe às portas da loucura. Cresceu cosida com as saias de Joana, a Louca nas sombras geladas daquele hospício e só viu a luz do Sol aos dezassete anos, quando o irmão, Carlos V, negociou o seu casamento com o Rei de Portugal. Muito sã de espírito e robusta de corpo era Sua Majestade para o que tinha passado, ainda mais tendo visto morrer os filhos, um por um. Só João Manuel vivia ainda. Não era, pois, de estranhar a tremura que levava nas mãos, o tom baço da pele e os humores melancólicos ou enraivecidos que a vinham tomando.
Não vejo tal afronta nas intenções do poeta, Alteza, esse assunto particular já se deu há um ror de anos, nem Luís Vaz era nascido..., desculpou-o Paula Vicente. Tenho para mim que o poeta não quis outra coise senão imitar os clássicos, fazer renascer os gregos e os romanos, como dita a moda. E sabeis bem que a infanta dona Maria não morre de amores por ele. Dona Catarina cerrou os lábios com força e arqueou as sobrancelhas. Reparei que ostentava uma gargantilha de várias fiadas de pérolas com um enorme rubi pendente. Vingava agora na profusão de jóias a míngua do Convento de Tordesilhas. Corpulenta e pesada como andava, foi penosamente que se levantou do estrado. Pousou o bordado numa almofada de seda e, seguida pelo seu Bejayo, pôs-se a caminhar pela sala, para trás e para diante, como fera enjaulada. De quando em vez parava, arquejante, saltando-lhe os olhos das pinturas de Jorge Afonso e Gregório Lopes para os novos guadamecis com cenas de caça que enfeitavam as paredes. Ganhava tempo e, quando assim era, o melhor era prepararmo-nos para o pior. Calámo-nos todas.
Não me interessa ouvir-te! Luís Vaz ridicularizou-me, desrespeitou-me, usou os dramaturgos antigos com a firme intenção de me desafiar, reacendendo os meus fantasmas. Escutai esta deixa: meu pai era clérigo, e os clérigos sempre chamam aos filhos sobrinhos; e daqui me ficou a mim, ser filho de meu tio. Acaso a achais galante a apropriada? Pois a mim não me deu vontade alguma de rir. Não me bastava assistir à morte prematura de toda a minha família, não me bastava ter de enfrentar este tempo conturbado de falta de fé, com as blasfémias de Lutero, não me bastava a incerteza da sucessão do Reino, para ter ainda de me sujeitar a semelhante desfaçatez! Com franqueza, senhoras!» In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
                                                                                           
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