sexta-feira, 8 de junho de 2018

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «E o ódio era tamanho e tão grande a sede de vingança que chegou ao ponto de um dia solicitar ao seu aliado, Jorge Costa, mais conhecido por cardeal Alpedrinha»

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«(…) Finda a reunião, durante a qual o soberano se limitou a escutar, o monarca Manuel I levantou-se da cadeira régia, benzeu-se, garantiu à assembleia que Deus estava com ele, revelou a intenção de ir aos paços da Alcáçova do castelo visitar a rainha, acamada por causa de uma danada crise intestinal, ouviu o arcebispo dizer imediatamente Que o Altíssimo a proteja com a sua infinita misericórdia!, secundado pelo Amén dos restantes, e convocou um novo encontro para o fim da manhã seguinte, véspera da partida da embaixada. El-rei Manuel era naquele dia o homem mais feliz do mundo. Aliás: ele era o Mundo. E talvez por isso, ao contrário do habitual, não interveio nenhuma vez, nem sequer se pronunciou quando Diogo Pacheco acabou a leitura da oração, aplaudida por todos os presentes. Acaso não gostastes da minha prédica?, perguntou o jurisconsulto ao monarca, já à saída do palácio, com a incómoda certeza de que sempre fora, e continuava a ser, muito difícil a um homem de mérito conservar permanentemente o valimento régio.
Gostei, respondeu ele de imediato. Mas, para ser franco, não estive muito atento, porque o que acabámos de ver hoje nas ruas de Lisboa e no Cais da Ribeira ainda não me saiu da cabeça. Terão sido os animais que perturbaram o vosso delicado espírito...? Nada disso, preclaro amigo, contestou o rei, encolhendo os ombros em jeito de aparente hostilidade, foi sim a magnificência da festa, e também a alegria do povo, que me faz pensar que os portugueses amam cada vez mais o seu rei. Amor ninguém vos nega, Alteza, concluiu o outro, para o acalmar. E, juntando as mãos como que numa oração, acrescentou: disso podereis estar seguro. Contudo, o rei Manuel, não obstante o carácter arrogante e a atitude de bravata que manifestava a toda a hora e em todas as circunstâncias, não era, como nunca fora, um homem seguro de si. Na qualidade de soberano, vivia permanentemente sob a rigidez turva da memória do seu antecessor, primo e cunhado João II, cuja fortíssima personalidade sempre o ofuscara e deprimira. Por outro lado, tinha a consciência de que chegara ao trono não por absoluto direito sucessório ou presuntivo, mas por razões meramente acidentais e de interesse familiar. Fora a própria viúva de João II, dona Leonor, filha do infante Fernando e de dona Beatriz, a impor ao soberano que confirmasse em testamento o nome do seu irmão Manuel, já então agraciado com o ducado de Beja, as terras de Viseu, Covilhã e Vila Viçosa, o governo do mestrado da Ordem de Cristo, o título de Condestável do Reino e o cargo de fronteiro-mor de entre Tejo e Guadiana, como sucessor do ceptro e da coroa. Ela sabia bem que João II desejava que, uma vez falecido o filho varão, o infante  Afonso, coubesse a Jorge, produto de uma relação espúria mas apaixonada com Ana Mendonça, ocupar o sacrário da realeza quando a morte, já próxima, o arrancasse à vida. Mas a rainha, argumentando que o rapaz ainda não tinha completado dezasseis anos, além de representar uma obra ilegítima do marido, opôs-se veementemente à intenção do rei, chegando mesmo a ameaçar que jamais o ajudaria na protecção à doença se ele teimasse em tal propósito e não confirmasse Manuel herdeiro do trono no documento testamentário.
Fosse pelo facto de o monarca ter um especial amor ao filho adulterino, fosse pela circunstância de o povo exprimir um enorme encanto e simpatia por Jorge, ou tudo junto, a verdade é que a soberana sempre detestou o enteado. E o ódio era tamanho e tão grande a sede de vingança que chegou ao ponto de um dia solicitar ao seu aliado, Jorge Costa, mais conhecido por cardeal Alpedrinha, inimigo figadal mas dissimulado do monarca, para interceder junto da Santa Sé no sentido de esta recusar ao rei um eventual pedido de legitimização do bastardo, o que desde logo lhe impediria a subida ao poder régio». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
                                                                                                                 
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