«(…) Finda a reunião, durante a
qual o soberano se limitou a escutar, o monarca Manuel I levantou-se da cadeira
régia, benzeu-se, garantiu à assembleia que Deus estava com ele, revelou a
intenção de ir aos paços da Alcáçova do castelo visitar a rainha, acamada por
causa de uma danada crise intestinal, ouviu o arcebispo dizer imediatamente Que
o Altíssimo a proteja com a sua infinita misericórdia!, secundado pelo Amén
dos restantes, e convocou um novo encontro para o fim da manhã seguinte,
véspera da partida da embaixada. El-rei Manuel era naquele dia o homem mais
feliz do mundo. Aliás: ele era o Mundo. E talvez por isso, ao contrário do
habitual, não interveio nenhuma vez, nem sequer se pronunciou quando Diogo
Pacheco acabou a leitura da oração, aplaudida por todos os presentes. Acaso não
gostastes da minha prédica?, perguntou o jurisconsulto ao monarca, já à saída
do palácio, com a incómoda certeza de que sempre fora, e continuava a ser,
muito difícil a um homem de mérito conservar permanentemente o valimento régio.
Gostei, respondeu ele de
imediato. Mas, para ser franco, não estive muito atento, porque o que acabámos
de ver hoje nas ruas de Lisboa e no Cais da Ribeira ainda não me saiu da cabeça.
Terão sido os animais que perturbaram o vosso delicado espírito...? Nada disso,
preclaro amigo, contestou o rei, encolhendo os ombros em jeito de aparente
hostilidade, foi sim a magnificência da festa, e também a alegria do povo, que
me faz pensar que os portugueses amam cada vez mais o seu rei. Amor ninguém vos
nega, Alteza, concluiu o outro, para o acalmar. E, juntando as mãos como que
numa oração, acrescentou: disso podereis estar seguro. Contudo, o rei Manuel, não
obstante o carácter arrogante e a atitude de bravata que manifestava a toda a
hora e em todas as circunstâncias, não era, como nunca fora, um homem seguro de
si. Na qualidade de soberano, vivia permanentemente sob a rigidez turva da memória
do seu antecessor, primo e cunhado João II, cuja fortíssima personalidade
sempre o ofuscara e deprimira. Por outro lado, tinha a consciência de que
chegara ao trono não por absoluto direito sucessório ou presuntivo, mas por razões
meramente acidentais e de interesse familiar. Fora a própria viúva de João II, dona
Leonor, filha do infante Fernando e de dona Beatriz, a impor ao soberano que
confirmasse em testamento o nome do seu irmão Manuel, já então agraciado com o
ducado de Beja, as terras de Viseu, Covilhã e Vila Viçosa, o governo do
mestrado da Ordem de Cristo, o título de Condestável do Reino e o cargo de
fronteiro-mor de entre Tejo e Guadiana, como sucessor do ceptro e da coroa. Ela
sabia bem que João II desejava que, uma vez falecido o filho varão, o infante Afonso, coubesse a Jorge, produto de uma relação
espúria mas apaixonada com Ana Mendonça, ocupar o sacrário da realeza quando a
morte, já próxima, o arrancasse à vida. Mas a rainha, argumentando que o rapaz
ainda não tinha completado dezasseis anos, além de representar uma obra ilegítima
do marido, opôs-se veementemente à intenção do rei, chegando mesmo a ameaçar
que jamais o ajudaria na protecção à doença se ele teimasse em tal propósito e
não confirmasse Manuel herdeiro do trono no documento testamentário.
Fosse pelo facto de o monarca ter
um especial amor ao filho adulterino, fosse pela circunstância de o povo
exprimir um enorme encanto e simpatia por Jorge, ou tudo junto, a verdade é que
a soberana sempre detestou o enteado. E o ódio era tamanho e tão grande a sede
de vingança que chegou ao ponto de um dia solicitar ao seu aliado, Jorge Costa,
mais conhecido por cardeal Alpedrinha, inimigo figadal mas dissimulado do monarca,
para interceder junto da Santa Sé no sentido de esta recusar ao rei um eventual
pedido de legitimização do bastardo, o que desde logo lhe impediria a subida ao
poder régio». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor,
2008, ISBN 978-989-555-364-8.
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