sexta-feira, 22 de junho de 2018

A Princesa Determinada. Catarina de Aragão. Philippa Gregory. «… possa viver tranquilamente e com amor-próprio, uma vez que todos somos Povos do Livro. O seu erro foi que pretendiam essas tréguas, e confiaram nelas, e nós, como se verificou, não»

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«(…) O meu pai reúne-se com emissários estrangeiros na Sala dos Embaixadores, leva-os para a sala dos banhos para manterem conversações, como qualquer sultão ocioso. Aminha mãe senta-se de pernas cruzadas no trono dos Nasrid que reinaram aqui por várias gerações, os seus pés despidos, metidos em chinelos de pele macia, o tecido elo seu kamiz caindo em seu redor. Ouve os emissários do próprio Papa, numa sala de audiências cujas paredes esteio revestidas de ladrilhos coloridos e onde oscila uma luz pagã. Para ela, é como estar em casa, pois foi criada o Alcazar de Sevilha, outro palácio mouro. Passeamos nos seus jardins, banhamo-nos no seu hammam, calçamos os seus chinelos de pele macia perfumados e vivemos uma vida mais refinada e luxuosa do que poderiam sonhar em Paris, Londres ou Roma. Vivemos graciosamente. Vivemos, tal como sempre aspirámos virer, como mouros. Os nossos compatriotas cristãos criam cabras nas montanhas, rezam à Nossa Senhora em monumentos à beira da estrada, vivem aterrorizados pelas superstições e cheios de doenças, vivem no meio da sujidade e morrem jovens. Nós fomos ensinados pelos professores muçulmanos, examinados pelos seus médicos, estudamos as estrelas no céu, a que eles deram nome, contamos pelos seus números que começam no zero mágico, comemos os seus frutos doces e deleitamo-nos nas águas que correm pelos seus aquedutos. A sua arquitectura agrada-nos, a cada virar de esquina sabemos que riremos no meio da beleza. Agora, o seu poder protege-nos; o Alcazaba é, de facto, invulnerável a ataques, aprendemos a sua poesia, rimo-nos dos seus jogos, deliciamo-nos nos seus jardins, com os seus frutos, tomamos banho nas águas que fizeram fluir. Somos os vitoriosos, mas eles ensinaram-nos conto reinar. Por vezes, penso que nós é que somos os bárbaros, como os que vieram depois dos Romanos ou dos Gregos, que podiam invadir os palácios e capturar os aquedutos e, depois, sentar-se como macacos num trono, brincando com a beleza sem a compreender.
Pelo menos, não mudámos de fé. Todos os empregados do palácio têm de respeitar os credos da Única Igreja Verdadeira. As cornetas da mesquita foram silenciadas, não haverá mais chamamentos para as orações aos ouvidos da minha mãe. E se alguém discordar, pode partir para a África de imediato, converter-se de imediato, ou encarar as fogueiras da Inquisição (maldita). Não nos deixamos amolecer com os espólios da guerra, nunca nos esquecemos de que somos os vitoriosos e de que conquistámos a nossa vitória, pela força das armas e pela vontade de Deus. Fizemos uma promessa solene ao pobre rei Boabdil, de que o seu povo, os Muçulmanos, ficaria tão seguro sob o nosso governo como os cristãos estavam sob o seu. Prometemos a convivência, um modo de vivermos em conjunto e eles acreditam que construiremos uma Espanha onde qualquer pessoa, mouro, cristão ou judeu, possa viver tranquilamente e com amor-próprio, uma vez que todos somos Povos do Livro. O seu erro foi que pretendiam essas tréguas, e confiaram nelas, e nós, como se verificou, não». In Philippa Gregory, Catarina de Aragão, A Princesa Determinada, Livraria Civilização Editora, 2006, ISBN 978-972-262-455-8.

Cortesia CivilizaçãoE/JDACT