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O
Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) Perdoai-me, peço-vos, disse
o jovem. Não quero causar-vos problemas. Mas o facto é que já causaste. Cada acção
tua reflecte-se em mim, compreendes? Suger estava tão irritado que só lhe
apetecia esbofeteá-lo. Bernard era um estudante bastante dotado e, se se aplicasse
no estudo, teria um grande futuro, só que não conseguia dominar o temperamento
fogoso que o levava a meter-se em brigas e a perseguir raparigas. Naquele
momento, um rapaz mais novo e ruivo abriu caminho por entre os passantes e
pôs-se ao lado de Bernard, como se pretendesse tomar a sua defesa. Suger
olhou-o de fugida para não o encorajar. Conhecia-o de vista. Chamava-se Ramón,
olhos de fuinha e lábios proeminentes que lhe conferiam a típica expressão do
trapaceiro. O ruivo pigarreou e afrontou o magíster com um sorriso descarado. Esta
noite o nosso Bernard apanhou uma tareia de um taberneiro de Saint-Marcel.
Embora fosse aragonês, exprimia-se em latim, como todos os estudantes
estrangeiros em Paris. E por que motivo?, quis saber o médico. Por culpa
daquele tacanho! Ramón abriu os braços fazendo um gesto dramático. Queria que
pagássemos o vinho a preço de ouro! E nós... Com um gesto, Suger mandou-o calar
e dirigiu-se ao seu aluno. Bernard, a pergunta era para ti. Queres explicar-me?
O jovem concordou, embaraçado. Ramón
protestou por causa do preço do vinho. Recusou-se a pagar e o taberneiro
começou a bater-lhe... Oito denários!, continuou Ramón, batendo na testa com ar
de mártir. Oito denários por um copo de vinho! Um roubo! O taberneiro era maior
do que ele, explicou Bernard. Por isso entrei em sua defesa. Então o seu
companheiro começou a gritar: vede, magíster! Vede que rixa!
Com uma expressão cada vez mais
sombria, o médico censurou Bernard: já te disse mil vezes para te manteres
longe da periferia, sobretudo do Bairro de Saint-Marcel. Ali só poderás encontrar
aborrecimentos. Ramón começou a rir-se. Se por aborrecimentos entendeis vinho e
prostitutas... Suger estava farto daquele impertinente. Se continuasse a ouvi-1o,
a sua delicadeza iria definitivamente pelo cano. Daí que o tenha agarrado pela
gola e empurrado para dentro de um carro que passava naquele preciso momento. Ramón
acomodou-se no banco, afastando-se desfalecido como um rei deposto. Quanto a ti,
o médico agarrou Bernard pelo braço, vais acompanhar-me até à aula.
Amuado, Bernard caminhava ao lado
do magíster, dando pontapés nas pedras da calçada. Os rumores do Carnaval eram
agora menores e distantes. A rua, quase deserta, continuava por um declive cheio
de erva que ladeava umas ruínas antigas, as termas romanas e a arena de
Lutécia. O jovem dedicou-lhes um olhar ocioso. Rugas de velhice no rosto de
Paris. A Abadia de Sainte-Geneviève ficava perto, mas Suger atrasara o passo de
propósito. As lembranças da noite precedente já iam longínquas. A ânsia e o medo
que experimentara durante o caminho pareciam ecos de um sonho esfumado. O
pensamento do suevo, abandonado inconsciente no seu quarto, não lhe suscitava a
menor apreensão. De momento, tudo o que importava era fazer com que o rapaz que
tinha a seu lado ganhasse juízo». In Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins
do Mundo, 2013, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
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