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E foram precisamente os olhos, por me parecerem de todo inacessíveis, por a tornarem
de todo inacessível, que me deram nessa noite a coragem de a olhar de frente. Mas
sem a mínima veleidade, juro!, de algum dia a seduzir ou conquistar (abomináveis
palavras!), apenas com aquele emocionado fervor, também isento de qualquer
intenção de posse (outra palavra detestável!), que nos tira a respiração diante
de uma obra-prima; e obra-prima tanto mais inesperada por só em trânsito se
encontrar num museu medíocre, ou pelo menos anódino, aonde apenas fomos por acaso
e aonde é bem provável que nunca mais tornemos.
Tratava-se do primeiro grande jantar
oferecido por um desses casais de diplomatas latino-americanos que misteriosamente
conseguem ter já entrado em relações, seis meses depois de aqui terem chegado, com
todas as pessoas, mesmo todas, pensam eles, que se lhes afigura indispensável conhecer
em Lisboa. Um daqueles casais que devem dar-se ao pacientíssimo trabalho, semanas
a fio, de criteriosamente agrupar esses manequins em alegóricas parelhas, conjugais
ou não, para que do modo mais adequado eles representem, sei lá, a Política e a
Literatura, a Diplomacia e a Técnica, a Economia e o Foro, a Música e a Indústria,
a Televisão, os Transportes, o Turismo, o Teatro, o Toureio.
Nessa noite, se não me engano, a
minha mulher e eu simbolizaríamos a Medicina e a Arte: tudo era demasiado
genérico para que pudéssemos simbolizar, mais especificamente, a Pediatria e a Escultura.
E, quando por fim chegou aquele casal de estrangeiros relativamente aportuguesados
(além de relativamente mais novos que a maioria dos presentes), ninguém terá
ficado com grandes dúvidas: se o marido representava a Finança, a Agricultura
ou o Investimento Estrangeiro, a mulher, essa, não poderia ali comparecer senão
como perfeita imagem da Beleza. Nem outra devia ter sido a estratégica intenção
dos donos da casa. No momento das apresentações, eis a designada figura da Beleza
(que só por esse facto me estava a causar uma certa antipatia) detendo-se
diante da minha mulher, com um sorriso muito simples que imediatamente me desarmou:
boa noite, senhora doutora. Não se lembra de mim? A doutora tratou a minha filha
quando a minha filha era pequena... A Vicky... Ah! Claro, claro. Lembro-me muito
bem.
Depois, perguntando-lhe a minha
mulher como estava a pequena, a mãe da Vicky (que não tem forçosamente de se
chamar Vicky), erguendo a mão quase à altura da sua própria testa, no gesto de quem
desenha no ar o vulto de uma rapariguinha já muito espigada, murmurou, por entre
o mesmo bonito sorriso, desta vez um tudo-nada melancólico: assim... Deste tamanho.
A dona da casa, que de caninos arreganhados vigiava a cena, incamente ou aztecamente
pacientou, a pé firme, enquanto a mãe da suposta Vicky fornecia à minha mulher mais
algumas informações suplementares: que a pequena estava a passar muito melhor
da asma; que continuava no Liceu Francês; que dentro de dois anos iria estudar para
a Suíça; e que viviam ainda, claro está, na mesma quinta dos arredores de Sintra.
Só
então compreendi a inca ou azteca paciência da anfitrioa: não estava disposta a
que eu fosse apresentado pela minha mulher, ou apenas como marido da minha mulher,
o que igualmente redundaria em manifesto prejuízo do carácter alegórico da sua festa;
e fez questão, como já acontecera com todas as precedentes apresentações, em acompanhar
o meu nome (pois não representava eu ali a Arte?) da necessária referência à minha
actividade de escultor. Mas a mãe da pseudo-Vicky, embora sorrindo sempre (ah, que
bonito sorriso o seu!), limitou-se a dizer, em voz muito baixa, no tom quase
velado em que sempre parecia exprimir-se: tenho ouvido falar. Quase ao mesmo tempo,
o shake-hand do marido foi desenvoltamente solene como seria de esperar
dos seus óculos de tecnocrata; mas também sobriamente desportivo como convinha
à sua pele bronzeada em pleno Inverno». In David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz,
Editorial Presença, Lisboa, 1986, Depósito Legal nº 10705/85.
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