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Picolo.
Itália, Novembro de 1453
«(…) Do lado da terra, a pequena vila
piscatória estava circundada por muralhas altas com um único portão que se fechava
oficialmente ao pôr do sol. Freize chamou o guarda-portão, o qual abriu uma portinhola
e meteu nela a cabeça a barafustar que os viandantes deviam ter mais
respeitinho pelo regulamento, e não podiam entrar na vila depois de tocar o sino
do recolher obrigatório e de as portas se fecharem para passar a noite. - O sol
nem acabou de se pôr! Refilou Freize. O céu ainda está alumiado! Já se pôs, retorquiu
o guarda-portão. Como é que hei-de saber quem vocês são? Porque, como ainda não
está noite cerrada, podes ver muito bem quem somos, contrapôs Freize. Agora
deixa-nos entrar, senão vai ser pior para ti. O meu amo é inquiridor do próprio
Santo Padre, nós não podíamos ser mais importantes se fossemos cardeais.
A resmungar, o guarda-portão correu
a portinhola e desceu ao portão. Os viandantes esperaram do lado de fora, na derradeira
luz dourada do dia, e ouviam-no a queixar-se amargamente conforme alijava o portão
ruidoso para eles entrarem. Finalmente, passaram todos debaixo do arco. A vila não
tinha mais que umas ruas estreitas do monte até ao cais. Os viandantes desceram
das suas montadas e levaram-nas pela arreata até ao lado do cais, avançando com
prudência no empedrado muito gasto. Tinham entrado pela porta oeste da muralha do
perímetro que circundava toda a vila, onde havia uma porta trancada do lado norte
e outra igual virada a sul. No caminho até ao porto viram, de frente para o mar
escurecido, a única estalagem da vila com uma porta acolhedora escancarada, e janelas
bem alumiadas pela luz das velas.
Os cinco viandantes levaram as montadas
para o pátio dos estábulos, entregaram-nas ao moço de estrebaria, e rumaram ao átrio
da estalagem. Pelas janelas entreabertas ouvia-se ondas a bater nas muralhas do
cais, e entrava o cheiro a maresia e a redes de pesca. Piccolo era um porto concorrido
com quase uma dúzia de barcos no pequeno cais, uns ancorados e balouçantes na baía,
outros amarrados a argolas na muralha do porto. A vila tinha movimento mesmo
com a noite outonal a cair. Os pescadores rumavam a suas casas, os últimos viandantes
desembarcavam das embarcações mercantis que atravessavam o mar cada vez mais escuro.
A Croácia ficava a menos de 150 quilómetros a leste e quem entrava na estalagem,
a soprar nos dedos enregelados, queixava-se de um vento contrário que lhes
prolongara a viagem em quase dois dias e os deixara gelados até aos ossos. Não tardaria
a ser Inverno, e seria tarde para viagens por mar para todos, menos os destemidos.
Ishraq e Isolde ficaram com o último quarto particular da casa, um espaço exíguo
debaixo do tecto inclinado.
Ocasionalmente, ouvia-se ratos a correr
pelo soalho, e talvez também ratazanas, mas as duas donzelas não se deixaram afectar
por isso. Estenderam as capas de montar em cima da cama e lavaram mãos e rosto na
pequena bacia de barro. Freize, Luca e o irmão Peter ficariam no quarto do sótão
em frente, com mais meia dúzia de homens, como era habitual quando havia muitos
viandantes e a estalagem estava cheia. O irmão Peter e Luca fizeram moeda ao ar
pelo último lugar na cama grande e Luca perdeu, teria de se contentar com um colchão
de palha nas tábuas. A estalajadeira pediu desculpas a Luca, cujo ar bem-parecido
e boas maneiras chamavam a atenção onde quer que ele fosse, mas disse que a estalagem
estava cheia nessa noite, e na noite seguinte ainda seria pior, pois corria o
boato de que iria chegar à vila uma romaria impressionante». In Philippa Gregory, Filhas
da Tempestade, 2013, Topseller, 20/20 Editora, 2015, ISBN 978-989-849-173-2.
Cortesia de Topseller/20/20E/JDACT