«A
capitã Dominika Egorova, do Serviço de Informações Estrangeiras russo, o SVR, puxou
para baixo a bainha do seu pequeno vestido preto ao serpentear por entre a multidão
de peões do bombardeante caos de néon vermelho do Boulevard de Clichy, em Pigalle.
Avançava de queixo erguido, fazendo estalar os saltos negros no passeio parisiense,
sem tirar os olhos da cabeça grisalha do coelho que ia à sua frente, tratava-se
de uma vigilância de seguimento a solo de um alvo apeado, uma das especialidades
mais difíceis das artes de rua ofensivas. Dominika cobria-o de forma irregular,
ora seguindo paralelamente a ele pela placa central do boulevard, ora colando-se
atrás dos peões do anoitecer para lhe examinar o perfil. O homem parou a fim de
comprar um kebab esturricado, caracteristicamente de carne de porco, naquele
bairro cristão, a um vendedor ambulante que ateava o lume de uma pequena
braseira com um pedaço de cartão dobrado, lançando de vez em quando uma fagulha
sobre a multidão de transeuntes e envolvendo a esquina em nuvens de fumo rescendentes
a coentro e pimentão. Dominika abrandou a marcha, ocultando-se atrás de um poster
era pouco provável que o coelho estivesse a usar a paragem para comer qualquer coisa
rápida como meio de verificar se vinha alguém atrás dele, nos três últimos dias
tinha-se mostrado desatento na rua, mas ela queria evitar que ele desse pela sua
presença cedo demais. Já tinha havido bastantes outras criaturas na rua a olhar
para ela ao passar pelo meio da multidão, pernas de bailarina, seios imponentes,
olhos azuis-claros de arco voltaico, a tirarem-lhe a pinta, a farejarem à procura
de força ou debilidade.
Com duas olhadelas hábeis. Dominika
examinou o jardim zoológico de rostos, mas não sentiu aquele formigueiro na
nuca que significava o preâmbulo de complicações. O coelho, um persa, acabou de
arrancar as tiras de carne com os dentes e atirou o pauzinho do kebab para
a sarjeta. Aparentemente aquele muçulmano xiita não tinha rebuço em comer carne
de porco, nem, aliás, em chafurdar com a cara entre as pernas de prostitutas.
Retomou a marcha e Dominika acompanhou-lhe o passo. Um jovem moreno, de barba
por fazer, deixou os amigos encostados a uma janela a escorrer vapor de um restaurante
asiático de massas, veio colar-se a Dominika e passou-lhe um braço por cima do ombro.
Je bande pour toi, disse naquele francês macarrónico do Magrebe; ela dava-lhe
um grande tes… Só me faltava esta! Não tinha tempo para aquilo; sentiu a onda latente
no estômago a subir-lhe até aos braços. Não. Faz-te de gelo. Va voir ailleurs
si j’y suis, vai ver se eu estou lá fora, respondeu por cima do ombro. O
jovem parou de chofre, fez um gesto obsceno e cuspiu no passeio». In Jason
Matthews, O Palácio da Traição, 2015, Lua de Papel, LeYa, 2016, ISBN
978-989-233-595-7.
Cortesia de LuadePapel/LeYa/JDACT