«(…) Na verdade nada falta no cenário para que o símile da cura psicanalítica
se justifique. O nosso surgimento como Estadofoi do tipo traumático e desse
traumatismo nunca na verdade nos lavantámos até à plena assumpção da maturidade
histórica prometida pelos céus e pelos séculos a esse rebento incrívelmente
frágil para ter podido aparecer, e misteriosamente forte para ousar subsistir.
(Talvez não seja por acaso que os mitos historiográficos ligados ao
nascimentode Portugal tenham um perfil tão freudiano com sacrilégios maternos e
palavra quebrada, Teresa e Egas Moniz...). A mistura fascinante de fanfarronice
e humildade, de imprevidência moura e confiança sebastianista, de cinconsciência
alegre e negro presságio, que constitui o fundo do carácter português, está
ligada a esse acto sem história que é para tudo quanto nasce o tempo do seu nascimento.
Através de mitologias diversas, de historiadores ou poetas, esse acto sempre
apareceu, e com razão, como da ordem do injustificável, do incrível, do milagroso,
ou num resumo de tudo isso, do providencial. É de uma lucidez e de uma sabedoria
mais fundas que a de todas as explicações positivistas, esse sentimento que o português
teve sempre de se crer garantido no seu ser nacional mais do que por simples habilidade
e astúcia humana, por um poder outro, mais alto, qualquer coisa como a mão de Deus.
Esta leitura popular do nosso destino colectivo exprime bem a relação
históricaefectiva que mantemos connosco mesmos enquanto entidade nacional. Nela
se reflecte aconsciência de uma congenital fraqueza e a convicção mágica de uma
protecção absoluta que subtrai essa fragilidade às oscilações lamentáveis de
todo o projecto humano sem a flecha da esperança a orientá-lo. Esta conjunção
de um complexo de inferioridade e superioridade nunca foi despoletada como
conviria ao longo da nossa vida histórica e, por isso, misteriosamente nos
corrói como raiz que é da relação irrealista que mantemos connosco mesmos. Segundo
as contingências da situação internacional ou mundial, aparece ao de cima um ou
outro complexo, mas com mais constância os dois ao mesmo tempo, imagem inversa
um do outro. É por de mais claro que ambos cumprem uma única função: a de esconder
de nós mesmos a nossa autêntica situação de ser histórico em estado de
intrínseca fragilidade. Não fomos, nós somos uma pequena nação que desde a hora
do nascimento se recusou a sê-lo sem jamais se poder convencer que se transformara
em grande nação. Contudo, se exceptuarmos talveza Macedónia e Roma, poucas
vezes um povo partindo de tão pouco alcançou (embora sob uma forma desorbitada
fautora de nova consciência de impotência mascarada de poderio) um direito tão claro
a ser tido por grande. Acontece, todavia, que mesmo na hora solar da nossa
afirmação histórica, essa grandeza era, concretamente, uma ficção. Nós éramos
grandes, dessa grandeza que os outros percebem de fora e por isso integra ou
representa a mais vasta consciência da aventura humana, mas éramos grandes
longe, fora de nós, no Oriente de sonho ou num Ocidente impensado ainda.
Europa via-nos mais (como dignos de ser vistos) que nos veria depois, mas
via-nos menos do que se via a si mesma entretida nas celebrações sumptuosas ou
fúnebres de querelasde família com que liquidava o feudalismo e gerava o mundo moderno
(capitalismo, protestantismo, ciência). À hora exacta da nossa glória
excessiva, o espanhol, enfim unido, começava a levantar a sua sombra imensa, ao
mesmo tempo sobre a nossa aventura e a imagem dela no tempo europeu, até
assumir em nosso nome tanto uma como outra. Colombo colhendo num lance de dados
sem igual os louros próximos do Gama. Os Lusíadas recebem uma luz espectral e fulgurante
quando lidos no contexto de uma grandeza que subterraneamente se sabe uma ficção
ou, se se prefere, de uma ficção que se sabe desmedida mas precisa de ser
clamada à face do mundo menos para que a oiçam do que para acreditar em si
mesma.Da nossa intrínseca e gloriosa ficção Os Lusíadas são a ficção. Da nossa
sonâmbula e trágica grandeza de um dia de cinquenta anos, ferida e corroída
pela morte próxima, o poema é o eco sumptuoso e triste. Já se viu um poema
épico assim tão triste, tão heroicamente triste ou tristemente heróico, simultaneamente
sinfonia e requiem? O livro singular é o lençol de púrpura dos nossos deuses
(heróis) mortos. Mas à hora nona, o nosso cadáver era já daqueles que Nietzsche
diria prometido a todas as ressurreições. O primeiro traumatismo fora superado
por três séculos de pé no redemoinho peninsular e século e meio de equilíbrio
sobre o mar português. Antes da noite o poema recolhe a nossa primeira e
eterna figura que acaso, sem ele, houvesse perdido a chave e a vontade da sua
ressurreição. Sessenta anos em contacto directo (e na economia invisível da
história porventura frutuoso) com o interlocutor imediato de um viver que foi e
é sempre múltiplo diálogo mas que nós teimamos em contemplar como solilóquio,
permitiram, enfim, que nos descobríssemos às avessas, que sentíssemos na carne
que éramos (também) um povo naturalmente destinado à subalternidade». In
Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino
Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.
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