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Foi também providenciado o pagamento dos soldos e das quantias anuais devidas aos
vassalos e a todas as outras pessoas que a isso tinham direito, para que ninguém
tivesse desculpa para negligenciar o seu equipamento. El-rei enviou cartas de percebimento
aos senhores, fidalgos e homens de conta, para que se fizessem prestes para ir na
armada e para que lhe dissessem com brevidade com que gentes tencionavam
servi-lo naquela aventura, de modo a serem desembargadas as verbas necessárias.
Ao infante mais velho e herdeiro do trono, o infante Duarte, que contava então 22
anos e que estava destinado a envolver-se na administração do reino, foi dado o
encargo da justiça e da fazenda régias, uma tarefa bem pesada e que o príncipe me
confessou mais tarde tê-lo conduzido a uma depressão profunda, que só a doença entretanto
contraída pela mãe, e o que isso exigiu dele, ajudou a ultrapassar. Já João I chamou
a si o encargo da coordenação do projecto e da organização das artilharias e das
armas que haveriam de equipar a frota que, nesse dia 24 de Julho de 1415, partiu
do Restelo para Santa Catarina, antes de se fazer ao mar oceano.
5.ª- Feira, 25 de Julho: zarpar em dia de
São Tiago
No cais, a população apinhava-se para
ver zarpar a formosa frota de destino misterioso. Era o culminar de muitos meses
ou até anos de preparativos intensos e que haviam espantado (e cansado) o povo.
Quem lá esteve falava de como se tinham limpado as armas, fabricado biscoito, salgado
enormes quantidades de carne e de outras vitualhas, corregido dezenas de navios
e aparelhado as respectivas guarnições. Sobretudo em Lisboa e no Porto, a agitação
tinha sido grande, de dia e de noite. Junto ao rio Tejo, pudera-se observar o labor
dos calafates e dos mesteirais a reparar os navios, enquanto noutros locais os
homens decepavam bois e vacas, esfolavam os animais, cortavam-nos e salgavam-nos,
metendo-os depois nos tonéis e nas botas em que haveriam de ser embarcados. Por
seu lado, os pescadores, com a ajuda das suas mulheres, tinham aberto e salgado
pescadas, cações e raias, entre outro pescado que espalhavam ao sol. Já os tanoeiros
tinham-se atarefado a reparar vasilhas para transporte de vinhos, carnes e outros
mantimentos, enquanto os alfaiates e os tosadores aparelhavam os panos e
costuravam as librés de maneira vária, ao gosto dos senhores que lhas
encomendavam. Enquanto isso, os carpinteiros tinham-se aplicado a encaixar os trons
e as bombardas, mais a restante artilharia e os seus reparos, ao mesmo tempo
que os cordoeiros tinham dado o seu melhor para compor guindastes, cabos e outra
cordoaria de linho. Tinham sido meses e meses agitados para aprontar uma armada
que, finalmente, dizia adeus a Lisboa.
Lisboa vista do rio na segunda metade
do século XVI, por George Braunio. Neste desenho, é ainda possível observar a urbe
tardo-medieval, defendida pelo grande perímetro da muralha fernandina e coroada
pelo velho castelo de São Jorge. In Album/Atlantico Press.
A capital, diga-se de passagem, tinha
sofrido bastante com o acontecimento, ficando muito gasta de pão e de outros
mantimentos, pelo que el-rei decidira conceder isenção do pagamento da dízima e
da sisa aos mercadores que importassem ou que trouxessem por mar os cereais e
os legumes de que Lisboa precisava. Ao mesmo tempo, e de forma avisada, João I renovara
a antiga regra de ninguém (mestres de navios, marinheiros ou senhores, em especial
os de Lisboa) poder fretar navios para levar pão, castanhas, avelãs, nozes e
outros mantimentos, assim como armas (lanças, dardos, espadas, solhas, bacinetes,
cotas ou bestas), aço, ferro ou outras ajudas, a terra de mouros, sob pena de morrerem
e de os seus bens e navios serem divididos entre a Coroa e os acusadores». In João Gouveia
Monteiro e António Martins Costa, 1415, A Conquista de Ceuta, Manuscrito, 2015,
ISBN 978-989-881-804-1.
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