domingo, 4 de novembro de 2018

A Biblioteca Perdida do Alquimista. Marcello Simoni. «E consegue distinguir um frade de um herege? Ou um filósofo de um alquimista? E Ignazio ergueu o indicador, num gesto burlesco. Fique bem atento, meu caro»


jdact

«(…) Isso é ao sul de Toulouse, não muito longe do castelo de Foix. Então Uberto apenas me precederá... Ele não correrá riscos, apressou-se a acrescentar o magister, gesticulando animadamente. Parecia entusiasmado com o rumo que a conversa havia tomado e por pouco não derramou a sua sopa. Desse modo, vocês obterão informações seguras, e não desvarios de um possesso! Galib pronunciou a última palavra em tom meio alto, tanto que um murmúrio inquieto ressoou pela mesa. Um cavaleiro de baixa condição, com as mãos besuntadas de um molho amarelado, prorrompeu numa gargalhada sarcástica. Deixem comigo o tal possesso! Verão como o faço recuperar logo o juízo! Risadas ao fundo incitaram-no a prosseguir, e ele, após olhar em volta, exclamou: mas vejam só! Nas extremidades da mesa há uma conversa sobre alquimia, endemoniados e outras bobagens semelhantes. Como se um rei precisasse dessas trapaças para governar! Pegou um pedaço de carne e mergulhou-o no molho, juntamente com os dedos. Conversa fiada e livros poeirentos! Bastam uma espada e um bom cavalo para acabar com Satanás. No entanto, damos ouvidos a quem? A um velho caduco e a um moçárabe idiota. Sim, meus senhores, não notaram? Um moçárabe, eis o que é Ignazio de Toledo, esse chacal que apareceu para tentar nos ludibriar com os seus subterfúgios. Ignore esse animal, aconselhou Galib, que também era moçárabe. Deve estar completamente bêbado. O cavaleiro, porém, continuou a sua arenga: vejam como aproveita para se empanturrar de graça o nosso moçárabe! Quem dá importância às suas patranhas de feiticeiro? A mim, bastam estas mãos para acabar com qualquer alquimista.
Ignazio não ficou indiferente àquelas palavras, embora fossem pronunciadas por um guerrejador do rei de Castela. O nervosismo por causa da tarefa confiada a Uberto perturbava a sua tranquilidade e, além disso, ele entrevia a possibilidade de tirar proveito da situação, então bateu a mão na mesa e disse em voz alta: Esse gracioso senhor parece versado nas ciências ocultas. O tom de zombaria atraiu logo a atenção de todos. O guerrejador soltou o pedaço de carne na travessa de molho, sufocou um arroto e pôs-se em pé. De que está falando, meio árabe? Um cavaleiro cristão sabe sempre distinguir o bem do mal. O mercador abriu os braços, simulando espanto. Ora, estou diante de um grande magister! Esperou que algumas risadas ecoassem pela sala e prosseguiu na pantomima: este aí decerto conhece os cultos dos hereges e os segredos da alquimia. Nunca na vida precisei conhecer nada!, exclamou o cavaleiro, gesticulando com as mãos sujas de molho. Não tenho necessidade da sabedoria de um dominicano para reconhecer um herege ou um feiticeiro quando vejo um. E isso vale também para você, mestiço de sarraceno! Percebeu então que fora longe demais, pois se aferrou à primeira frase que lhe pareceu oportuna: em caso de incerteza, poderei pedir conselho a um bom frade. E consegue distinguir um frade de um herege? Ou um filósofo de um alquimista? E Ignazio ergueu o indicador, num gesto burlesco. Fique bem atento, meu caro. Se raciocinar desse modo, cedo ou tarde, acabará de joelhos diante de um burro.
Um riso geral percorreu a mesa. Os mesmos comensais que haviam incitado o guerrejador agora tomavam o partido de Ignazio. O cavaleiro, prorrompendo em insultos e sem pensar duas vezes, sacou da adaga e avançou na direcção de Ignazio. Veremos se ainda terá vontade de brincar, miserável, quando estiver sem nariz e sem orelhas! O mercador, indiferente à ameaça, olhou para Fernando III e seus comensais mais próximos. Willalme, ao contrário, levou a mão ao cabo do punhal árabe que trazia à cintura, pronto para entrar em acção. Mas não foi necessário. Tudo parou ao som de uma voz autoritária. Cavaleiro, guarde essa arma e sente-se! O padre Gonzalez de Palencia havia saltado da cadeira, com uma expressão de ultraje no seu rosto. Você já foi grosseiro o suficiente. Mas ele insultou-me!, bradou o soldado, apontando a adaga para Ignazio. Ele apenas se defendeu das suas injúrias dizendo a verdade. Você é um brutamontes que só sabe manejar uma arma. Qualquer camponês com saúde poderia aprender a fazer o mesmo, disse o padre Gonzalez ressaltando mais ainda a sua expressão de desprezo. Obedeça se não quiser ser posto a ferros!
Diante dessa ameaça, o cavaleiro cedeu e sentou-se de cabeça baixa, resmungando. O dominicano acompanhou-lhe os movimentos com um olhar severo e virou-se para Ignazio: señor, permita que eu lamente o acontecido em nome de sua majestade e desta corte. Caso se sinta ofendido, esse cavaleiro imprudente lhe apresentará suas desculpas. Não é necessário, padre Gonzalez, respondeu Ignazio com um ar seráfico. Agradeço-lhe por ter tomado a minha defesa e a sua majestade por tê-lo permitido. O frade predicante esboçou um sorriso intrigado. Ah, vejo que sabe o meu nome... Creio que é dever de um convidado informar-se sobre quem se senta à direita do dono da casa. Admiro a sua subtileza, mestre Ignazio, disse o padre Gonzalez, perscrutando-o com um olhar ao mesmo tempo arguto e discreto». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.

Cortesia de CAutor/JDACT