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«(…) Isso é ao sul de Toulouse,
não muito longe do castelo de Foix. Então Uberto apenas me precederá... Ele não
correrá riscos, apressou-se a acrescentar o magister, gesticulando
animadamente. Parecia entusiasmado com o rumo que a conversa havia tomado e por
pouco não derramou a sua sopa. Desse modo, vocês obterão informações seguras, e
não desvarios de um possesso! Galib pronunciou a última palavra em tom meio
alto, tanto que um murmúrio inquieto ressoou pela mesa. Um cavaleiro de baixa
condição, com as mãos besuntadas de um molho amarelado, prorrompeu numa gargalhada
sarcástica. Deixem comigo o tal possesso! Verão como o faço recuperar logo o
juízo! Risadas ao fundo incitaram-no a prosseguir, e ele, após olhar em volta, exclamou:
mas vejam só! Nas extremidades da mesa há uma conversa sobre alquimia,
endemoniados e outras bobagens semelhantes. Como se um rei precisasse dessas
trapaças para governar! Pegou um pedaço de carne e mergulhou-o no molho, juntamente
com os dedos. Conversa fiada e livros poeirentos! Bastam uma espada e um bom
cavalo para acabar com Satanás. No entanto, damos ouvidos a quem? A um velho
caduco e a um moçárabe idiota. Sim, meus senhores, não notaram? Um moçárabe,
eis o que é Ignazio de Toledo, esse chacal que apareceu para tentar nos
ludibriar com os seus subterfúgios. Ignore esse animal, aconselhou Galib, que
também era moçárabe. Deve estar completamente bêbado. O cavaleiro, porém,
continuou a sua arenga: vejam como aproveita para se empanturrar de graça o
nosso moçárabe! Quem dá importância às suas patranhas de feiticeiro? A mim,
bastam estas mãos para acabar com qualquer alquimista.
Ignazio não ficou indiferente
àquelas palavras, embora fossem pronunciadas por um guerrejador do rei de
Castela. O nervosismo por causa da tarefa confiada a Uberto perturbava a sua
tranquilidade e, além disso, ele entrevia a possibilidade de tirar proveito da
situação, então bateu a mão na mesa e disse em voz alta: Esse gracioso senhor
parece versado nas ciências ocultas. O tom de zombaria atraiu logo a atenção de
todos. O guerrejador soltou o pedaço de carne na travessa de molho, sufocou um arroto
e pôs-se em pé. De que está falando, meio árabe? Um cavaleiro cristão sabe
sempre distinguir o bem do mal. O mercador abriu os braços, simulando espanto. Ora,
estou diante de um grande magister! Esperou que algumas risadas ecoassem pela sala
e prosseguiu na pantomima: este aí decerto conhece os cultos dos hereges e os
segredos da alquimia. Nunca na vida precisei conhecer nada!, exclamou o
cavaleiro, gesticulando com as mãos sujas de molho. Não tenho necessidade da
sabedoria de um dominicano para reconhecer um herege ou um feiticeiro quando
vejo um. E isso vale também para você, mestiço de sarraceno! Percebeu então que
fora longe demais, pois se aferrou à primeira frase que lhe pareceu oportuna: em
caso de incerteza, poderei pedir conselho a um bom frade. E consegue distinguir
um frade de um herege? Ou um filósofo de um alquimista? E Ignazio ergueu o
indicador, num gesto burlesco. Fique bem atento, meu caro. Se raciocinar desse
modo, cedo ou tarde, acabará de joelhos diante de um burro.
Um riso geral percorreu a mesa.
Os mesmos comensais que haviam incitado o guerrejador agora tomavam o partido
de Ignazio. O cavaleiro, prorrompendo em insultos e sem pensar duas vezes,
sacou da adaga e avançou na direcção de Ignazio. Veremos se ainda terá vontade
de brincar, miserável, quando estiver sem nariz e sem orelhas! O mercador,
indiferente à ameaça, olhou para Fernando III e seus comensais mais próximos.
Willalme, ao contrário, levou a mão ao cabo do punhal árabe que trazia à
cintura, pronto para entrar em acção. Mas não foi necessário. Tudo parou ao som
de uma voz autoritária. Cavaleiro, guarde essa arma e sente-se! O padre
Gonzalez de Palencia havia saltado da cadeira, com uma expressão de ultraje no
seu rosto. Você já foi grosseiro o suficiente. Mas ele insultou-me!, bradou o
soldado, apontando a adaga para Ignazio. Ele apenas se defendeu das suas injúrias
dizendo a verdade. Você é um brutamontes que só sabe manejar uma arma. Qualquer
camponês com saúde poderia aprender a fazer o mesmo, disse o padre Gonzalez
ressaltando mais ainda a sua expressão de desprezo. Obedeça se não quiser ser
posto a ferros!
Diante dessa ameaça, o cavaleiro
cedeu e sentou-se de cabeça baixa, resmungando. O dominicano acompanhou-lhe os
movimentos com um olhar severo e virou-se para Ignazio: señor, permita que eu
lamente o acontecido em nome de sua majestade e desta corte. Caso se sinta
ofendido, esse cavaleiro imprudente lhe apresentará suas desculpas. Não é
necessário, padre Gonzalez, respondeu Ignazio com um ar seráfico. Agradeço-lhe
por ter tomado a minha defesa e a sua majestade por tê-lo permitido. O frade
predicante esboçou um sorriso intrigado. Ah, vejo que sabe o meu nome... Creio
que é dever de um convidado informar-se sobre quem se senta à direita do dono
da casa. Admiro a sua subtileza, mestre Ignazio, disse o padre Gonzalez, perscrutando-o
com um olhar ao mesmo tempo arguto e discreto». In Marcello Simoni, A
Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube
do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.
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