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«(…) Padre Gonzalez não é um bom
sujeito. É extremamente frio e calculista. Além disso, acho que sabe muita
coisa sobre o rapto de Branca de Castela. Muita coisa que guarda só para si,
pois foi ele quem convenceu o rei a se meter nessa aventura. Ignazio franziu o
cenho. De facto, após a conversa com Fernando III, começara a alimentar certas
dúvidas. Porque o rei de Castela, embora fosse parente consanguíneo da rainha
da França, deveria socorrê-la? Essa atitude poderia ser vista como uma
intromissão política nas terras conturbadas do Languedoque. Será que, após a
morte de Luís VIII, a corte parisiense não teria conseguido controlar a situação?
Não havia então na França cavaleiros capazes de socorrer a rainha? E que
vantagens poderia obter o padre Gonzalez fazendo valer sua influência nas
terras occitânicas? Que significava, exactamente, a expedição contra o conde de
Nigredo? Ignazio evitou mostrar-se preocupado e pôs-se a remexer a comida que
lhe haviam servido, uma pastilla de pombo envolta numa crosta perfumada de canela.
Já Galib pediu apenas uma sopa simples de centeio e ervilhas. Ignazio, no
entanto, ruminava pensamentos demais para calar-se. Magister, fale-me do
possesso que Folco de Toulouse afirma ter interrogado. Sobre isso, sei tanto
quanto você, meu filho. Galib limpou os lábios na manga da batina. Não imagino
onde o bispo Folco achou o tal endemoniado nem o que este lhe disse. Você é que
terá de descobrir. Amanhã de manhã, partirá com Filippo de Lusignano para
Toulouse, em missão que deverá permanecer no mais absoluto sigilo. Receberão um
salvo-conduto firmado pelo padre Gonzalez, a ser entregue somente a Folco. O
tom de voz de Galib tornou-se grave. Porém, tenho outro encargo a lhe confiar,
além do que recebeu do rei.
O Senhor me surpreende, disse Ignazio.
Galib franziu as sobrancelhas. O caso é complicado. Como lhe disse, já ouvi
falar do conde de Nigredo. Isso foi há vários anos, quando conheci um castelão
do sul da França, um homem chamado Raymond de Péreille, da casa de Mirepoix.
Foi ele quem me falou pela primeira vez sobre o conde de Nigredo, descrevendo-o
como um alquimista, mas não lhe dei grande importância, achando que aquilo não passava
de lenda. Só depois descobri que o conde existia mesmo. Seria bom encontrarmos
esse Raymond de Péreille, interveio Uberto. Galib assentiu. Na verdade, é o que
eu gostaria de lhes pedir. Mas devem manter segredo a respeito disso. Não
podemos dizer nada nem mesmo a Lusignano, pois ele contaria tudo ao padre
Gonzalez. E não confio nesse dominicano. Interrompeu-se, olhando em volta. O
senhor de Péreille protege os hereges e é a favor dos cátaros. Entendem o
motivo de tanta reserva? Uberto lançou um olhar ao rosto sério do padre e em
seguida perguntou: como poderemos encontrar Raymond de Péreille sem sermos descobertos?
Simples, respondeu Galib. Um de
vocês, em vez de ir para Toulouse com Lusignano, partirá esta noite mesmo e se
encontrará secretamente com Péreille. Você, Uberto, me parece o mais indicado
para essa missão. Não, não..., resmungou o mercador. Meu filho fica comigo. No
entanto o velho insistiu: compreendo a sua apreensão, Ignazio. Entretanto, se
fizerem como digo, evitarão ser manipulados pelo padre Gonzalez e pelo bispo
Folco. E se esse senhor de Péreille estiver mancomunado com o conde de Nigredo?,
objetou o mercador, agora visivelmente nervoso. E se tiver sido ele quem raptou
Branca de Castela? Afinal, tirar a rainha da França do caminho beneficiaria
muito os cátaros.
Galib sacudiu a cabeça. Raymond
de Péreille não tem nenhum interesse em brigar com os cruzados franceses e
muito menos com a corte parisiense, explicou. Dispõe de tão poucos soldados que
precisa da protecção do conde de Foix. Não teria recursos para tramar o rapto
de uma rainha. Além disso, desde que o conheço, procura ficar à sombra, longe
do teatro da guerra. Uberto pousou os cotovelos na mesa e olhou para o pai. O
mestre Galib tem razão, disse, apertando os olhos como um gato selvagem. A missão
que me confia é importante. E posso desempenhá-la muito bem, pois não sou mais
o rapazinho ingénuo de outrora. Encontrarei Raymond de Péreille, obterei dele
as informações necessárias sobre o conde de Nigredo e encontrarei vocês em
Toulouse. Ainda não estou inteiramente convencido, objetou Ignazio. Sabia que Uberto
estava ansioso para se pôr à prova, mas também sabia que devia colocar um freio
na sua impetuosidade. Onde está Péreille actualmente? Aonde meu filho deve ir? Galib
respondeu agora em tom mais suave: nos Pirenéus, num conhecido refúgio dos cátaros:
o castelo de Montségur. O mercador pareceu aliviado». In Marcello Simoni, A
Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube
do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.
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