domingo, 4 de novembro de 2018

A Biblioteca Perdida do Alquimista. Marcello Simoni. «Aonde meu filho deve ir? Galib respondeu agora em tom mais suave: nos Pirenéus, num conhecido refúgio dos cátaros: o castelo de Montségur. O mercador pareceu aliviado»

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«(…) Padre Gonzalez não é um bom sujeito. É extremamente frio e calculista. Além disso, acho que sabe muita coisa sobre o rapto de Branca de Castela. Muita coisa que guarda só para si, pois foi ele quem convenceu o rei a se meter nessa aventura. Ignazio franziu o cenho. De facto, após a conversa com Fernando III, começara a alimentar certas dúvidas. Porque o rei de Castela, embora fosse parente consanguíneo da rainha da França, deveria socorrê-la? Essa atitude poderia ser vista como uma intromissão política nas terras conturbadas do Languedoque. Será que, após a morte de Luís VIII, a corte parisiense não teria conseguido controlar a situação? Não havia então na França cavaleiros capazes de socorrer a rainha? E que vantagens poderia obter o padre Gonzalez fazendo valer sua influência nas terras occitânicas? Que significava, exactamente, a expedição contra o conde de Nigredo? Ignazio evitou mostrar-se preocupado e pôs-se a remexer a comida que lhe haviam servido, uma pastilla de pombo envolta numa crosta perfumada de canela. Já Galib pediu apenas uma sopa simples de centeio e ervilhas. Ignazio, no entanto, ruminava pensamentos demais para calar-se. Magister, fale-me do possesso que Folco de Toulouse afirma ter interrogado. Sobre isso, sei tanto quanto você, meu filho. Galib limpou os lábios na manga da batina. Não imagino onde o bispo Folco achou o tal endemoniado nem o que este lhe disse. Você é que terá de descobrir. Amanhã de manhã, partirá com Filippo de Lusignano para Toulouse, em missão que deverá permanecer no mais absoluto sigilo. Receberão um salvo-conduto firmado pelo padre Gonzalez, a ser entregue somente a Folco. O tom de voz de Galib tornou-se grave. Porém, tenho outro encargo a lhe confiar, além do que recebeu do rei.
O Senhor me surpreende, disse Ignazio. Galib franziu as sobrancelhas. O caso é complicado. Como lhe disse, já ouvi falar do conde de Nigredo. Isso foi há vários anos, quando conheci um castelão do sul da França, um homem chamado Raymond de Péreille, da casa de Mirepoix. Foi ele quem me falou pela primeira vez sobre o conde de Nigredo, descrevendo-o como um alquimista, mas não lhe dei grande importância, achando que aquilo não passava de lenda. Só depois descobri que o conde existia mesmo. Seria bom encontrarmos esse Raymond de Péreille, interveio Uberto. Galib assentiu. Na verdade, é o que eu gostaria de lhes pedir. Mas devem manter segredo a respeito disso. Não podemos dizer nada nem mesmo a Lusignano, pois ele contaria tudo ao padre Gonzalez. E não confio nesse dominicano. Interrompeu-se, olhando em volta. O senhor de Péreille protege os hereges e é a favor dos cátaros. Entendem o motivo de tanta reserva? Uberto lançou um olhar ao rosto sério do padre e em seguida perguntou: como poderemos encontrar Raymond de Péreille sem sermos descobertos?
Simples, respondeu Galib. Um de vocês, em vez de ir para Toulouse com Lusignano, partirá esta noite mesmo e se encontrará secretamente com Péreille. Você, Uberto, me parece o mais indicado para essa missão. Não, não..., resmungou o mercador. Meu filho fica comigo. No entanto o velho insistiu: compreendo a sua apreensão, Ignazio. Entretanto, se fizerem como digo, evitarão ser manipulados pelo padre Gonzalez e pelo bispo Folco. E se esse senhor de Péreille estiver mancomunado com o conde de Nigredo?, objetou o mercador, agora visivelmente nervoso. E se tiver sido ele quem raptou Branca de Castela? Afinal, tirar a rainha da França do caminho beneficiaria muito os cátaros.
Galib sacudiu a cabeça. Raymond de Péreille não tem nenhum interesse em brigar com os cruzados franceses e muito menos com a corte parisiense, explicou. Dispõe de tão poucos soldados que precisa da protecção do conde de Foix. Não teria recursos para tramar o rapto de uma rainha. Além disso, desde que o conheço, procura ficar à sombra, longe do teatro da guerra. Uberto pousou os cotovelos na mesa e olhou para o pai. O mestre Galib tem razão, disse, apertando os olhos como um gato selvagem. A missão que me confia é importante. E posso desempenhá-la muito bem, pois não sou mais o rapazinho ingénuo de outrora. Encontrarei Raymond de Péreille, obterei dele as informações necessárias sobre o conde de Nigredo e encontrarei vocês em Toulouse. Ainda não estou inteiramente convencido, objetou Ignazio. Sabia que Uberto estava ansioso para se pôr à prova, mas também sabia que devia colocar um freio na sua impetuosidade. Onde está Péreille actualmente? Aonde meu filho deve ir? Galib respondeu agora em tom mais suave: nos Pirenéus, num conhecido refúgio dos cátaros: o castelo de Montségur. O mercador pareceu aliviado». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.

Cortesia de CAutor/JDACT