Cortesia
de wikipedia e jdact
O
rosto
«A
senhora poderia ter sessenta, sessenta e cinco anos. Eu a olhava da minha
espreguiçadeira, recostado diante da piscina de um clube de ginástica no último
andar de um prédio moderno de onde se via Paris inteira através de imensas
janelas envidraçadas. Esperava o professor Avenarius com quem me encontro ali
de vez em quando para discutir umas coisas e outras. Mas o professor Avenarius
não chegava, e eu olhava a senhora; só, na piscina, imersa até à cintura, ela
olhava o jovem professor de natação que, de roupão, em pé um pouco acima de
onde ela estava, dava-lhe uma aula. Obedecendo a suas ordens, ela apoiou-se na
borda da piscina para inspirar e expirar profundamente. Fez isso seriamente,
com zelo, e era como se das profundezas das águas se elevasse a voz de uma velha
locomotiva a vapor (essa voz idílica, hoje esquecida, só posso transmitir aos
que não a conheceram, comparando à respiração de uma senhora de idade que
inspira e expira na borda de uma piscina). Olhava-a fascinado. Seu ar cómico
pungente me cativava (esse ar cómico, o professor de natação também percebia,
pois os cantos de seus lábios pareciam tremer a toda a hora), mas alguém falou
comigo e desviou a minha atenção. Pouco depois, quando quis voltar a observá-la,
a aula havia terminado. Ela foi embora, de maio, andando ao longo da piscina e
quando já tinha ultrapassado o professor de natação aproximadamente uns quatro ou
cinco metros, virou a cabeça para ele, sorriu, e fez um gesto com a mão.
Meu coração apertou-se. Esse
sorriso, esse gesto, eram de uma mulher de vinte anos! Sua mão tinha girado no
ar com uma leveza encantadora. Como se, brincando, ela jogasse para seu amante
um balão colorido. Esse sorriso e esse gesto eram cheios de encanto, enquanto
que o rosto e o corpo não o eram mais. Era o encanto de um gesto sufocado no não-encanto
do corpo. Mas a mulher, mesmo que soubesse que não era mais bonita, esqueceu
isso naquele momento. Por uma certa parte de nós mesmos, vivemos todos além do
tempo. Talvez só tomemos consciência de nossa idade em certos momentos excepcionais,
sendo, na maior parte do tempo, uns sem-idade. Em todo o caso, no momento em
que se virou, sorriu e fez um gesto com a mão para o professor de natação (que
não foi capaz de se conter e caiu na gargalhada), ela não tomava conhecimento
de sua idade. Graças a este gesto, no espaço de um segundo, uma essência de seu
encanto, que não dependia do tempo, revelava-se e me encantava. Fiquei
estranhamente comovido. E o nome Agnès surgiu no meu espírito. Agnès. Nunca
conheci uma mulher com esse nome.
Estou na cama, mergulhado na doçura
de um torpor. Às seis horas, depois do primeiro e leve despertar, estendo a mão
para o pequeno rádio colocado perto do meu travesseiro, e aperto o botão. Ouço
as notícias da manhã, mal distinguindo as palavras, e durmo de novo, durmo
tanto que as frases que escuto transformam-se em sonhos. É a fase mais bela do
sono, o mais delicioso momento do dia: graças ao rádio, saboreio os meus
eternos despertares e cochilos, esse embalo soberbo entre a vigília e o sono,
esse movimento que por si só me tira o desgosto de ter nascido. Será que sonho ou
estou realmente na ópera, diante de dois actores vestidos de cavalheiros que
falam com entonações acentuadas e variadas a previsão do tempo? Por que será
que não fazem isso com o amor? Depois compreendo que se trata de locutores, não
falam mais, mas se interrompem um ao outro brincando. O dia será quente, tórrido,
haverá tempestade, diz o primeiro, que o outro interrompe, fazendo graça: não é
possível! O primeiro responde no mesmo tom: mas sim, Bernardo. Sinto muito, mas
não há escolha. Um pouco de coragem! Bernardo cai na gargalhada e declara: eis
o castigo dos nossos pecados. E o primeiro: por que, Bernardo, tenho de sofrer
pelos seus pecados? Então Bernardo ri ainda mais, para deixar claro para os
ouvintes de que pecado se trata, e eu o compreendo: existe apenas uma coisa que
todos desejamos: que o mundo inteiro nos considere grandes pecadores! Que
nossos vícios sejam comparados aos temporais, às tempestades, aos furacões! Ao abrir
hoje o guarda-chuva em cima da cabeça, que cada francês pense com inveja no
riso equívoco de Bernardo. Giro o botão esperando dormir novamente em companhia
de imagens mais interessantes. Na estação ao lado, uma voz de mulher anuncia
que o dia será quente, tórrido, tempestuoso, e alegro-me de ver que na França
temos tantas estações de rádio, e que todas, no mesmo momento, falam a mesma
coisa. O feliz casamento da uniformidade com a liberdade, o que é que a
humanidade poderia desejar de melhor? Portanto volto à estação onde Bernardo se
gabava dos seus pecados; mas no seu lugar, uma voz de homem entoa um hino ao último
modelo da fábrica Renault, giro ainda o botão, um coro de mulheres enaltece as
liquidações de casacos de pele, volto para Bernardo, a tempo de ouvir os últimos
compassos do hino à Renault, depois o próprio Bernardo retoma a palavra». In Milan
Kundera, A Imortalidade, 1990, Editora dom Quixote, 2012, ISBN
978-972-204-881-1.
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