Cortesia
de wikipedia e jdact
O
rosto
«(…) Imitando a melodia que havia
terminado, nos informa com uma voz cantante que acabava de aparecer uma
biografia de Hemingway, a centésima vigésima sétima, mas essa realmente muito
importante, porque demonstra que, em toda a sua vida, Hemingway não disse uma só
palavra verdadeira. Aumentou o número dos seus ferimentos de guerra, fingiu ser
um grande sedutor quando ficou provado que em Agosto de 1944 e depois a partir
de Julho de 1959, ele estava completamente impotente. Não é possível, disse a
voz risonha do outro, e Bernardo responde brincando: mas é verdade..., e
voltamos todos para o palco da ópera, até Hemingway, o impotente, vai connosco,
depois uma voz muito grave evoca um processo que no decorrer das últimas
semanas emocionou toda a França: durante uma operação sem importância, uma
anestesia malfeita provocou a morte de um doente. Em consequência disso, a organização
encarregada de defender os consumidores, assim ela nos chama a todos, propõe
filmar no futuro todas as intervenções cirúrgicas e guardar os filmes em
arquivos. Esse seria o único meio, segundo a organização para a defesa dos
consumidores, para garantir a um francês morto pelo bisturi, que seria devidamente
vingado pela justiça. Depois durmo novamente.
Quando acordei, eram quase oito e
meia; imaginei Agnès. Como eu, ela está deitada numa grande cama. A metade
direita da cama está vazia. Quem é o marido? Aparentemente alguém que sai cedo
no sábado. E por isso que ela está só e oscila deliciosamente entre o despertar
e o sonho. Depois levanta-se. Em frente dela, num suporte comprido, está uma televisão.
Joga a sua camisola, que cobre a tela como um cortinado branco. Pela primeira
vez a vejo nua, Agnès, a heroína de meu romance. Ela está de pé, é bonita, não
posso tirar os olhos dela. Finalmente, como se tivesse sentido o meu olhar,
some no quarto vizinho e veste-se. Quem é Agnès?
Assim como Eva saiu de uma
costela de Adão, assim como Vénus nasceu da espuma, Agnès surgiu de um gesto de
uma senhora sexagenária, que vi na borda da piscina, dando adeus ao seu
professor de natação, e cujos traços já se apagam na minha memória. O seu gesto
despertou em mim uma imensa, uma incompreensível nostalgia, e essa nostalgia
gerou a personagem a quem dei o nome de Agnès. Mas o homem não se define, e uma
personagem de romance menos ainda, como um ser único e inimitável? Como então é
possível que o gesto observado numa pessoa A, esse gesto que formava com ela um
todo, que a caracterizava, que criava o seu encanto singular, seja ao mesmo
tempo a essência de uma pessoa B e de toda minha fantasia sobre ela? Isso
convida a uma reflexão: Se o nosso planeta viu passar oitenta bilhões de seres humanos,
é pouco provável que cada um deles tenha o seu próprio repertório de gestos. Matematicamente,
é impensável. Ninguém duvida que não haja no mundo incomparavelmente menos
gestos do que indivíduos. Isso leva-nos a uma conclusão chocante: um gesto é
mais individual do que um indivíduo. Para dizer isso em forma de provérbio: muitas pessoas, poucos gestos» In Milan
Kundera, A Imortalidade, 1990, Editora dom Quixote, 2012, ISBN
978-972-204-881-1.
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