«Está decretada a gravidade desta empresa. O que farei convosco
será grave, ainda que para tanto haja que rir-me. Ou, como hoje, nem tanto». In
Ana Luísa Amaral, Novas
Cartas Portuguesas
«(…) Por outras palavras, apesar
da repercussão significativa nos anos setenta de Novas Cartas, a sua
devida importância está ainda por reconhecer, uma vez que o livro tem sido
frequentemente treslido e tomado ora por uma visão ultrapassada ora por um
manifesto feminista hoje fora de moda. As recensões ao livro nos anos noventa
ainda o apresentavam como um mero documento histórico, talvez mais valioso (...) do que uma obra
literária, reflectindo o entusiasmo e as limitações da sua geração (Publisher’s
Weekly 1994). E, todavia, como Linda Kaufman já havia afirmado nos anos
oitenta, as três Marias não ( ... ) celebram meramente a mística feminina;
nem subscrevem as teorias essencialistas de algumas das feministas francesas
suas contemporâneas relativamente à natureza da mulher, ou seja, o livro que
escrevem abre caminho para questões da ordem do universal, que ultrapassam uma
ideia cristalizada de mulher, mantendo-se extraordinárias na sua actualidade. Desmontando,
como se referiu já, as noções de autoria e autoridade, o livro exibe, do ponto
de vista literário, três características principais que viriam a ser centrais
para a literatura contemporânea: a intertextualidade, a hibridez
e a alteridade. A dimensão intertextual, o carácter híbrido e o modo
como Novas Cartas Portuguesas lidam com o corpo social do discurso criam
instâncias de disrupção e transgressão raramente vistas na literatura ocidental
contemporânea, uma disrupção tão forte que, como refere Maria de Lourdes Pintasilgo
no Prefácio ao livro, a sua primeira
abordagem só pode ser feita à luz do que elas não são. Novas Cartas não são uma colectânea de cartas, embora se
reconheça nelas o estilo tradicionalmente cultivado pelas mulheres em
literatura. Não são um conjunto de poemas esparsos, embora em poesia se converta
toda a realidade retratada. Não são tão-pouco um romance, embora a história
vivida (ou imaginada) de Mariana Alcoforado lhes seja a trama principal. São
talvez um pouco de tudo isso. E ainda mais: uma forma nova de dizer a pessoa
humana e o seu modo de estar no mundo (...). Por isso podem Novas Cartas
ser ainda analisadas à luz de novas lentes teóricas.
Apesar
de ensinado actualmente num número considerável de universidades estrangeiras,
e apesar de ter sido, no estrangeiro, objecto de estudo de dissertações,
ensaios e artigos de imprensa, o livro carece de uma visão englobante da sua
génese e da total compreensão das suas propostas e desafios. As leituras
políticas do livro são frequentes, mas raramente têm em conta o contexto das
teorias linguísticas ou pós-estruturalistas; também raramente foi sublinhado o
potencial do livro para fazer explodir as dicotomias em que assentam
identidades e papéis sexuais, e, com elas, a própria rigidez atribuída à
periodização histórica; e raramente a obra foi entendida como um novo discurso crítico
sobre a re/apresentação, a subjectividade e o desejo da mulher, desempenhando a
função de definir o feminismo, nas palavras de Teresa Lauretis, como um horizonte
de possíveis significados num determinado ponto da história. Reescrevendo,
pois, as conhecidas cartas seiscentistas da freira portuguesa, Novas Cartas
Portuguesas afirma-se como um libelo contra a ideologia vigente no período
pré-25 de Abril (denunciando a guerra colonial, o sistema judicial, a
emigração, a violência, a situação das mulheres), revestindo-se de uma
invulgar originalidade e actualidade, do ponto de vista literário e social.
Comprova-o o facto de poder ser hoje lido à luz das mais recentes teorias
feministas (ou emergentes dos Estudos Feministas, como a teoria queer), uma vez que resiste à
catalogação, ao desmantelar as fronteiras entre os géneros narrativo, poético e
epistolar, empurrando os limites até pontos de fusão. Comprova-o o facto de,
passados mais de trinta anos, vir ao encontro de questões prementes na agenda
política actual, como a feminização da pobreza, identificada como obstáculo à
promoção da paz e ao desenvolvimento mundial. Pelo seu amplo significado em termos
políticos e estéticos, o livro foi, e permanece, uma obra fundamental na nossa literatura e cultura contemporâneas,
revelando-se um contributo inestimável para a história das mulheres, no sentido
mais lato, e para as questões relativas à igualdade e à justiça. Esse
significado teve um reconhecimento além-fronteiras que nunca foi devidamente
assinalado, nem estudado em Portugal, reconhecimento evidente no número
espantoso de traduções para outras línguas, que o coloca entre os livros
portugueses mais traduzidos no estrangeiro. Tendo estado esgotado durante mais
de dez anos, o livro veria uma reedição, pela Dom Quixote, em 1998, e depois em 2001, também hoje completamente esgotada». In Maria Isabel Barreno, Maria
Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972, edição
anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN 978-972-204-011-2.
Cortesia
PdQuixote/JDACT