Stultifera
navis
«(…) Se se retiraram os leprosos do mundo e
da comunidade visível da Igreja, a sua existência no entanto é sempre uma
manifestação de Deus, uma vez que, no conjunto, ela indica a sua cólera e marca
a sua bondade: Meu companheiro, diz o ritual da Igreja de Viena, apraz ao Senhor
que estejas infestado por essa doença, e te faz o Senhor uma grande graça
quando te quer punir pelos males que fizeste neste mundo. E ao mesmo tempo em
que, pelas mãos do padre e seus assistentes, é arrastado para fora da Igreja gressu retrogrado, asseguram-lhe que ele
ainda é um testemunho de Deus: e por mais
que estejas separado da Igreja e da companhia dos Sãos, não estarás separado da
graça de Deus. Os leprosos de Brueghel assistem de longe, mas para sempre,
a essa subida do Calvário na qual todo um povo acompanha o Cristo. E,
testemunhas hieráticas do mal, obtêm a salvação na e através dessa própria
exclusão: uma estranha inversão que se opõe à dos méritos e das orações, eles
salvam-se pela mão que não se estende. O pecador que abandona o leproso à
sua porta está, com esse gesto, abrindo-lhe as portas da salvação. Por isso,
tem paciência com tua doença, pois o Senhor não te despreza por tua doença, e
não se separa de tua companhia; mas se tiveres paciência serás salvo, como o
foi o lazarento que morreu diante da casa do novo-rico e foi levado directamente
ao paraíso (ritual da diocese de Viena, impresso sob o arcebispo Gui de
Poissieu, por volta de 1478). O abandono é, para ele, a
salvação; sua exclusão oferece-lhe uma outra forma de comunhão.
Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o
leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Frequentemente nos mesmos
locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos
primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e cabeças alienadas assumirão o papel
abandonado pelo lazarento, e veremos que salvação se espera dessa exclusão,
para eles e para aqueles que os excluem. Com um sentido inteiramente novo, e
numa cultura bem diferente, as formas subsistirão, essencialmente, essa forma
maior de uma partilha rigorosa que é a exclusão social, mas reintegração espiritual.
Mas não nos antecipemos. A lepra foi substituída inicialmente pelas doenças
venéreas. De repente, ao final do século XV, elas sucedem a lepra como por
direito de herança. Esses doentes são recebidos em diversos hospitais de leprosos:
sob Francisco I, tenta-se inicialmente colocá-los no hospital da paróquia de
Saint-Eustache, depois no de Saint-Nicolas, que outrora tinham servido de gafarias. Por duas vezes, sob Carlos
VIII, depois em 1559, a eles tinham
sido destinadas, em Saint-Germaindes-Près, diversas barracas e casebres antes
utilizados pelos leprosos.
Eles tornaram-se tão numerosos que é
necessário pensar na construção de outros edifícios em certos lugares espaçosos
de nossa cidade e arredores, sem vizinhança. Nasceu uma nova lepra, que toma o
lugar da primeira. Aliás não sem dificuldades, ou mesmo conflitos. Pois os
próprios leprosos sentem medo. Repugna-lhes acolher esses recém-chegados ao
mundo do horror: Est mirabilies,
contagiosa et nimis formidanda infirmitas, quam etiam detestantur leprosi et ea
infectos secum habitare non permittant. Mas se os leprosos têm direitos
mais antigos de se instalar nesses lugares segregados, são pouco numerosos para
fazê-los valer; os atingidos pelas doenças venéreas, um pouco por toda parte, logo
ocuparam-lhes o lugar.
E, no entanto, não
são as doenças venéreas que assegurarão, no mundo clássico, o papel que cabia à
lepra no interior da cultura medieval. Apesar dessas primeiras medidas de
exclusão, elas logo assumem o seu lugar entre as outras doenças. De bom ou mau
grado, os novos doentes são recebidos nos hospitais. O Hòtel-Dieu de Paris os
acolhe (a primeira menção à doença venérea na França encontra-se num relatório
do Hòtel-Dieu), várias vezes tenta-se escorraçá-los, mas em vão: eles lá ficam
e se misturam aos outros doentes. Na Alemanha constroem para eles casas
especiais, não para estabelecer a exclusão, mas para assegurar-lhes um
tratamento: os Fugger, em Augsburgo, fundam dois hospitais desse género. A
cidade de Nuremberg indica um médico que afirmava poder die malafrantzos
vertreiben. É que esse mal, diversamente da lepra, logo se tornou cousa
médica, inteiramente do âmbito do médico. Em todas as partes formulam-se tratamentos;
a companhia de Saint-Côme empresta dos árabes o uso do mercúrio; no Hòtel-Dieu
de Paris usa-se sobretudo a teriaga. Depois é a grande moda do guáiaco, mais precioso que o ouro das Américas,
a acreditar em Fracastor no seu Syphilidis
e em Ulrich von Hutten. Por toda parte, praticam-se as curas pelo suor.
Rapidamente a doença venérea se instala, no decorrer do século XVI, na ordem
das doenças que exigem tratamento. Sem dúvida, ela é considerada num conjunto
de juízos morais: mas essa perspectiva quase nada modifica a compreensão médica
da doença». In Michel Foucault, História da Loucura, Filosofia, Éditions Gallimard,
1972, Editora Perspectiva, Colecção Estudos, tradução de José Netto, São Paulo,
Brasil, 1978, 2010, ISBN 978-852-730-109-1.
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