A
Maldição. A rainha sem amor
«(…) Isabel teve uma expressão
decepcionada. Roberto d'Artois adiantou-se ao que ela ia dizer, estendendo os
braços. Esperai, esperai, disse ele. Isso não é tudo. A honesta, a pura, a casta
Margarida mandou arranjar um aposento na velha torre do Palácio de Nesle a fim,
disse ela, de lá recolher-se para fazer suas orações. Acontece porém que ela
faz suas orações exactamente nas noites em que vosso irmão Luís está ausente. E
a luz brilha ali até bem tarde. Sua prima Branca, às vezes sua prima Joana, vão
ter com ela. Espertas, as donzelas! Se alguma fosse interrogada, não lhe
custaria nada dizer: Como? De que me acusais? Mas eu estava com a outra. Uma
mulher culpada defende-se mal. Três devassas obstinadas são uma fortaleza.
Entretanto, vede bem: nas mesmas noites em que Luís está ausente, nas mesmas
noites em que a Torre de Nesle tem luz, naquela ribanceira ao pé da torre,
naquele lugar sempre deserto há movimento. Já se viu saírem homens que não
estavam vestidos de frades e que, se tivessem vindo cantar o ofício da tarde,
teriam entrado por outra porta. A corte cala-se, mas o povo começa a murmurar,
porque os criados tagarelam antes dos senhores... Falando, ele se agitava,
gesticulava, caminhava, abalava o chão, e sacudia o ar com grandes movimentos
de sua capa. A exibição de excesso de força era, em Roberto d'Artois, uma forma
de persuasão. Procurava convencer tanto com os músculos quanto com as palavras,
e encerrava seu interlocutor num turbilhão. E a grosseria de sua linguagem, tão
de acordo com o seu aspecto, dava a impressão de ser a prova de uma rude boa
fé.
Entretanto, observando-o mais de
perto era possível pensar se todo aquele movimento não seria alarde de pelotiqueiro, ou representação de
comediante. Um ódio atento, tenaz, luzia nos olhos cinzentos do gigante. E a
jovem rainha esforçava-se por conservar-se senhora de si. Falastes nisso com
meu pai?, disse ela. Minha boa prima, conheceis o rei Filipe melhor do que eu.
Acredita tanto na virtude das mulheres que seria preciso mostrar-lhe vossas
cunhadas deitadas com os seus amantes para convencê-lo a ouvir-me. E eu não sou
muito bem-visto na corte, desde que perdi meu processo... Sei, meu primo, que
foram injustos convosco, e se dependesse só de mim essa injustiça seria
reparada. Roberto d'Artois precipitou-se para a mão da rainha, pousando ali os lábios,
num grande ímpeto de gratidão. Mas justamente por causa desse processo,
recomeçou docemente Isabel, não poderiam julgar que estais agindo por vingança?
O gigante levantou-se de um salto. Mas está claro, senhora, que estou sendo
instigado pelo desejo de vingança!
Decididamente era desarmante,
aquele grande Roberto! Pensava-se em armar-lhe um laço, apanhá-lo em flagrante,
e ele se abria, inteiramente, como uma janela. Roubaram-me a herança do meu
condado de Artois, exclamou ele, para dá-lo à minha tia Mafalda de Borgonha...,
a cadela, a rameira! Que ela rebente! Que a lepra lhe coma a boca! Que o peito
lhe caia em podridão! E por que fizeram isso? Porque, à força de engodar, de
intrigar, de forrar as mãos dos conselheiros de vosso pai com belas libras
sonantes, ela conseguiu casar com vossos irmãos aquelas duas devassas que são
suas filhas, e a outra devassa, que é sua prima. Começou então a imitar um
discurso imaginário de sua tia Mafalda, condessa da Borgonha e de Artois,
dirigindo-se ao rei Filipe, o Belo: Meu
caro senhor, meu parente, meu compadre, e se casásseis minha querida Joana com
vosso filho Luís? Não? Ele não quer? Acha que ela é um tantinho enfezada? Pois
bem: dai-lhe Margarida, então, e depois dai Joana a Filipe, e minha doce Branca
ao vosso belo Carlos. Que prazer, vê-los enamorar-se uns dos outros! E depois,
se me concederem o Artois, que era propriedade de meu defunto irmão, meu
Franco-Condado da Borgonha irá para aquelas pombinhas. Meu sobrinho Roberto?
Que lhe deem um osso àquele cão! O Castelo de Conches, o condado de Beaumont
bastam para tal labrego. E eu sopro minhas malícias nas orelhas de Nogaret, e
mando mil maravilhas a Marigny..., e caso uma, e caso duas, e caso três. E mal
isso se faz, minhas loureirazinhas começam as suas combinações, seus
recadinhos, arranjam amantes, e se ocupam em cornear muito bem a coroa da
França...
Ah!, se fossem irrepreensíveis,
senhora, eu saberia roer meu freio. Mas comportarem-se assim com tamanha
baixeza, depois de me terem prejudicado tanto, as meninas da Borgonha hão de
saber quanto isso lhes custará, e eu me vingarei nelas de tudo quanto me fez a
mãe (O caso da sucessão do Artois é um dos mais prodigiosos dramas de herança
que a história regista; em 1237, São
Luís dera o condado pariato do Artois, como apanágio, a seu irmão Roberto. Esse
Roberto I d'Artois teve um filho, Roberto II, que se casou com Amicie de Courtenay,
dama de Conches. Teve dois filhos: Filipe, morto em 1298 de ferimentos recebidos na Batalha de Furnes, e Mafalda, que
se casou com Othon, conde palatino da Borgonha; por morte de Roberto II,
ocorrida em 1302, na Batalha de
Courtray, ferido por trinta golpes de pique, a herança do condado foi reclamada
ao mesmo tempo por seu neto Roberto III (filho de Filipe) e por sua filha
Mafalda, que invocava uma disposição do direito consuetudinário do Artois; Filipe,
o Belo, em 1309, resolveu a pendência em favor de Mafalda; esta, tornada
regente do condado da Borgonha pela morte de seu marido, nesse meio tempo
casara as suas duas filhas, Joana e Branca, com o segundo e o terceiro filhos
de Filipe, Filipe e Carlos; a decisão que a favoreceu foi grandemente inspirada
por essas alianças, que traziam novamente para a coroa o condado da Borgonha,
chamado Franco-Condado, entregue como dote a Joana; Roberto não se deu
por vencido, e durante vinte anos, com obstinação rara, através de acções
jurídicas ou por acção directa, manteve contra a tia uma luta em que todos os
processos foram utilizados de parte a parte, delacção, calúnia, falsificações,
feitiçaria, envenenamento, agitação política; tal luta terminou tragicamente
para Mafalda, tragicamente para Roberto, tragicamente para a França e
tragicamente para a Inglaterra).
Isabel conservava-se pensativa
diante daquele furacão de palavras. D'Artois aproximou-se dela e, baixando a
voz: Elas vos odeiam. É verdade que, de minha parte, não gostei muito delas,
desde o princípio, e sem saber por quê, disse Isabel. Não gostais delas porque
são falsas, porque não pensam senão no prazer e não têm o senso de seus
deveres. Mas elas vos odeiam porque têm ciúmes de vós. Minha sorte, entretanto,
nada tem de invejável, disse Isabel, suspirando, e o lugar delas parece-me mais
doce do que o meu. Vós sois uma rainha, senhora. Vós o sois na alma e no
sangue. Vossas cunhadas poderão usar a coroa, mas nunca serão rainhas. E é por
isso que sempre vos tratarão como inimiga. Isabel levantou para seu primo os
belos olhos azuis, e d'Artois sentiu que dessa vez acertara. Isabel estava
definitivamente de seu lado. Tendes os nomes de..., enfim..., dos homens com os
quais minhas cunhadas..., disse ela». In Maurice Druon, Os Reis Malditos, O Rei de
Ferro I, 1965, tradução de Nair Lacerda, Gótica, colecção Cavalo de Tróia,
2006, ISBN 978-972-792-159-1.
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