Vaticano.
Março de 1588
«Felice Peretti, também conhecido
como papa Sisto V, observava de perto a pilha de bulas. Estavam todas bem
enroladas e organizadas como lenha para fogueira, algumas maiores, outras
menores e todas com os selos pendurados como se fossem caudas de cachorrinhos. Ah,
disse ele com olhar de satisfação. Elas pareciam irradiar poder, no entanto,
faltava-lhes algo: a bênção papal. Levantou a mão direita e disse em alto e bom
latim: Ó Deus soberano, ouça a prece de teu servo Sisto. De acordo com a função
a mim conferida de vigário de Cristo, teu representante na Terra, com o poder
de ligar e desligar / permitir e proibir, de perdoar os pecados ou negar o
perdão, condeno a inglesa malévola, a falsa rainha. Ela está, por meio desta
bênção, excomungada do mundo cristão até que se arrependa. Os que estão sob seu
comando não serão condenados como ela, abençoamos a nau Empreitada da
Inglaterra. A bordo dos navios da grande
Armada vão essas bulas de excomunhão e a sentença de Elizabeth, a rainha
impostora da Inglaterra, pedindo a sua deposição, a fim de que seus súbditos possam ser salvos de sua
impiedade e do seu governo perverso. Eles verão a luz da alegria assim que os vingadores
de Cristo puserem os pés em solo inglês. Lá, serão distribuídas aos fiéis. Deus
piedoso, pedimos isso em nome do salvador e pela santa Igreja. O papa, aos
sessenta e oito anos de idade, circundou a pilha lentamente, fazendo o sinal da
cruz e aspergindo água benta. Depois, acenou com a cabeça, chamando o
mensageiro espanhol que aguardava em silêncio. Pode levá-las agora, disse. A
Armada parte de Lisboa, não é? Sim, Santidade. No mês que vem. Sisto fez um
gesto de aprovação com a cabeça e falou: Elas devem chegar a tempo, então. Tem
tubos à prova d’água para levá-las? Tenho certeza de que serão providenciados.
O rei Filipe pensa em tudo.
Costa
Sul, Inglaterra. Abril de 1588
O velho ermitão saiu lentamente
de dentro de seu abrigo, como fazia todas as manhãs. Construiu um refúgio sobre
as ruínas da capela de São Miguel, incrustado próximo ao pico da ponta saliente
do promontório, estendendo-se até a baía de Plymouth Sound. Ele estava em pé na
beira do penhasco, o mar agitava-se longe lá em baixo e ele olhava de um lado
para o outro, procurando pelos navios. O sol da manhã, reflectindo
sobre a água, dificultava a visão. Fechou um pouco os
olhos, protegendo-os com a mão, tentando ver algo que parecesse uma vela de
navio no horizonte. Nada. Hoje ainda não seria o dia. Resmungando, voltou a
cuidar de sua tarefa: preparar o farol. Havia encontrado um dólmen
abandonado no cume do pico, um monumento antigo, e carregava galhos, palha e
gravetos para lá há dias. A fogueira que brilharia do alto da montanha em forma
de cone tinha que ficar visível a quilómetros de distância,
até o próximo farol. E provavelmente aquele seria o primeiro. Se a Armada
conseguisse ser avistada de algum lugar, aquele seria o primeiro. E ele, o
ermitão da capela de São Miguel, ficaria de sentinela
enquanto ainda houvesse um raio de luz por lá. Fez um afago no dólmen. Coisas
pagãs. Feitas há muito tempo por pessoas que já haviam partido. Mas quem se
importava se fosse ajudar na luta contra o inimigo espanhol?
Torre
de Londres. Maio de 1588
Quieto!,
disse Philip Howard ao padre. Alguém está vindo. O guarda estava fazendo a
ronda. Os passos no chão de pedras do lado de fora eram o som que Philip ouvia
até mesmo em seus sonhos. Abaixou a cabeça, apoiando-a nos joelhos, e relaxou
os braços. Tinha que fingir que estava dormindo. O padre fez o
mesmo, usando o seu manto como cobertor. Os outros na sala ficaram
em silêncio, petrificados. Os passos cessaram; a tranca na porta de ferro dos
prisioneiros foi aberta. Depois, trancada novamente e os passos continuaram. Philip
permaneceu parado por mais alguns minutos por questão de segurança. Finalmente
sussurrou: ele já se foi. Não fará novas rondas por duas ou três horas. Vamos começar.
Vamos começar o trabalho de Deus. Os outros prisioneiros da cela movimentaram-se.
O padre tirou o manto que cobria a cabeça. Em nome da Santa Madre Igreja, disse,
celebrarei esta missa. Philip balançou a cabeça de forma negativa e falou: deve
ser dedicada a outra intenção; eu não era um traidor até que tentaram me
transformar num; agora, preso por cinco anos aqui na Torre, vi pessoalmente a
maldade da rainha e da sua suposta igreja». In Margaret George, Isabel I, O
Anoitecer de um Reinado, tradução de Lara Freitas, Geração Editorial, 2012, ISBN
978-858-130-076-4.
Cortesia
de GeraçãoE/JDACT