A
Mudez
«Húmido na manhã, o prédio de azulejo
ressuma estrias de água que descem com lentura. Os vidros das janelas estão
opacos e desenha-se com a ponta do dedo um arco de correr e o pau de guiá-lo. Em
cima da cadeira pesada de arrastar, de assento aveludado e sombrio, estão as botinas
de pelica de Maina Mendes, cujos dedos põem ainda entre si e o vidro, por sobre
a rua, os círculos do barco a vapor e depois as lâminas de uma tesoura aberta. A
cortina de peso cremoso, formando desenhos de pássaros, idênticos em ambos os
lados, pássaros de vastas asas concertadas no crochet lento de fio gordo, cai-lhe
sobre o folho do bibe armado em asa menor sobre o ombro que não sente. De compostura
grave, paramentada de boneca limpa, Maina Mendes desenha a dedo fugas moventes na
névoa que da boca seca cai ao vidro. Muitas crianças o fazem na mesma manhã de Outubro
a vir, mas nenhuma com tão pouca alegria e tão quieta ira. O cheiro de cera
quente e sabonária e pano brunido não a chantam, o pé risonho de saltitar corredores,
à cozinha, e não há crianças a estar por sobre uma cadeira de sala por tempo tanto,
desenhando no vidro com tal rancor, coisas que embora de lâminas e rodas e rápidas,
Maina Mendes desenha agora o arreda do
irmão do rei, não são do rapaz oculto na menina sã a desbravar, mas antes de uma
fúria de fêmea e atilada, de uma persistência maior em ir-se ou acabar o em
torno. Maina Mendes distingue-se de todos os pregados na manhã detrás de um
vidro numa casa que lhes não é lição de vida, por sua lama escorraçada e seus insectos
mortos, por tão conhecida em suas leis e odores, crianças de gente vivendo a minúcia
de preservar-se, distingue-se por uma qualidade de fero amuo marcado desde o
início, pela firme constância em desapontar, não pela vivacidade, mas pela parcimónia
e pela contenção levadas até ao absurdo. Vai ainda comendo as unhas da mão esquerda,
que o espaço oco antes do ventre apenas bombeado se afirma em pequenos estertores
quase surdos e o leite vai criando natas e aguando-se na cozinha longe. Não que
fosse pouco antada ao amor do tempo, Tem dois vincos nas pernas onde o pai a ergueu
ao ar no vestíbulo espelhando o escuro e o metal do bengaleiro, e canudos, que eram
então ainda quentes do ferro, por isso, pelos dedos grossos de seu pai querendo-os,
desfeitos muito pouco. Tem migalhas numa asa do nariz, do ninho junto ao seio solto
de sua mãe procurando-lhe a boca para as torradas e bolos de amêndoa, da cama em
que mal pousara. Apenas Maina Mendes jamais seria amante em espaços curtos, nos
climas sóbrios dos tempos e da zona de gentes em que nascera, criatura demasiado
habitada por heranças outras, tenaz na ímpia solidão e avessa à domesticidade.
No
quarto, os ganchos de ligar cabelos vão da pedra mármore à altura dos seios já presos,
acima dos músculos já hirtos no cingir das barbas de baleia e dos colchetes, vão
da pedra aos dedos escorrentes e ao cabelo tombado da nuca e que vai sendo
erguido, madeixa após madeixa sombria no ainda pouco claro da manhã. E o cabelo
já concertado desfaz-se junto à fonte esquerda, para acrescer mais um aperto enredado
que tomará luz, tirará volume? E o pensamento ali não é, apenas os olhos bem fitos
nos vários declives do rosto no espelho diante, como se houvera um acerto único
a encontrar entre os plissados que se entumecem junto ao rosto de pigmentação
certa e leitosa e os olhos sem presença, como se foram só a retina de um animal
cordato que se afina a pelagem, diariamente acossado pela mesma carga de seu
encanto e mansidão, um acordo apenas a buscar entre o grosso da madeixa a prender
e o castanho da cama e do guarda-roupa ondulando onde o espelho imperfeito se ergue
ou desce em lombas invisíveis nas primeiras imagens da mãe de Maina Mendes pela
manhã. A água na bacia redonda está cinzenta e queda. O ar é de odor espesso de
cama e luz parcelar onde volteia o pó ainda. A cama tem no espelho uma só cova funda
e larga e é tudo o que há de branco revolto diante da cabeça que se avoluma de pesos
presos. Sem pressa, movendo-se pouco, a mãe de Maina Mendes vai vomitar sobre a
água quieta e ergue depois, sem urgência, a voz vaga: ó Hortelinda, Hortelinda!» In Maria Velho da Costa, Maina Mendes, 1969,
Publicações dom Quixote, 2001, ISBN 972-201-075-1.
Cortesia
de PdQuixote/JDACT