segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Os Sensos Incomuns. Maria Isabel Barreno. «Era uma vez um homem de olhar fugidio. Frequentemente revirava os olhos para cima, procurando os seus pensamentos no alto. No alto do cérebro, no alto do céu ou no alto da inspiração…»

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As amigas
«(…) Um dia, encontraram no chão da rua um homem com um qualquer ataque, talvez droga, talvez outras poluições psíquicas desta vida. Era jovem ainda. Mais ninguém estava perto. Pestanejante olhou brevemente, pestanejando, desviou os olhos, estas coisas fazem-me imensa impressão, murmurou, e seguiu andando. Autofágica olhou intensamente o jovem, curiosa, roendo as unhas, olhou em volta esperando nova presença ou inspiração, sem saber o que fazer. Biface olhou de olhos arregalados e boca aberta, especada durante alguns minutos; depois fechou mais a sua boca prognata, esticou o queixo, dirigiu-se ao telefone mais próximo e chamou o 112. Dividida entre o sim e o não, era a única que tinha algum senso prático. As outras gastavam-se nas convicções absolutas, totalitarismos de seus universos interiores.
A partir daqui a amizade delas, ou o convívio, foi arrefecendo. Pestanejante não podia suportar a ideia de que Autofágica a vira voltar as costas à dor alheia e que Biface fora a única que agira em boa samaritana. Autofágica intuía que chegara a uma conclusão, a uma resposta ao seu olhar ansioso, e que mais nenhuma revelação lhe viria daquelas duas mulheres, suas amigas tão relativamente íntimas: vira a ineficiência que se esconde naqueles que só sabem falar, vira os recursos que se escondem nos hesitantes, contraditórios e pobres de espírito. Biface deixou de ter vontade de rir quando via Autofágica roer as unhas perante o mundo, quando ouvia Pestanejante ditar conselhos ao mundo. Tudo isto insidiosamente, na sombra mais escura do espírito de cada uma: nenhuma delas saberia reportar agravos, ou os porquês das mudanças de sentimento e atitude. Acho que me fartei delas, foi dizendo cada uma. Assim acabam as mais belas e as mais feias amizades.
Alguns anos mais tarde uma dúvida surgiu na mente de Pestanejante: será que aquele jovem caído na rua apenas tivera essa missão, a de as separar, às três, tão pouco feitas para permanecerem juntas? Autofágica e Biface nunca mais pensaram no assunto.

A Direcção do Olhar
Era uma vez um homem de olhar fugidio. Frequentemente revirava os olhos para cima, procurando os seus pensamentos no alto. No alto do cérebro, no alto do céu ou no alto da inspiração seria impossível dizer-se, porque ele não tinha convicções seguras e definitivas: não era religioso mas admitia que talvez, sim, houvesse um ser, por aí, causante de tudo, porque não, porquê atribuirmos as leis do mundo ao mero acaso ou a uma cega organização da matéria? Porquê darmos a primazia ao nada ou à matéria inanimada, dizia, e achava que essa tendência humana para preterir o ser para o lugar de mero efeito ou consequência do não-ser era um sintoma do masoquismo que acabava por se generalizar à maior parte dos actos humanos. Com estes argumentos, aliás certeiramente expostos, ele podia ser um homem brilhante, não afirmava as paisagens divinas como origem de todo o fenómeno humano e, simultaneamente, também não conferia grande confiança à nossa espécie, julgando-a capaz dos absurdos mais notáveis, como esse de utilizar o próprio discurso do ser, do ser que fala e se pretende conhecedor de si, ordenador do resto, para o reduzir a comemoração de fenómenos menores do que o elo caucionante ser.
Restava-lhe talvez esse refúgio sagrado e constantemente evocado ao longo dos tempos por filósofos, artistas, intelectuais: um secreto contacto entre os seres humanos e alguns fogos, ou energias, ou seres invisíveis, por aí espalhados, no éter, na sombra dos cantos das nossas casas; enfim, aquilo a que se chama inspiração e que é sempre uma estranha amálgama de restos de fé, ou de fé mal resolvida num ser pensante absolutamente maior que nós, e de rasgos humanistas profundamente comovidos perante o milagre anónimo que somos. Quer dizer, parecia ser mesmo aí que ele buscava os seus pensamentos quando revirava os olhos: no alto da inspiração, nessa amálgama entre o aqui e o acolá, talvez nos astros ou na poeira cósmica ou no inconsciente colectivo, talvez na secreta alquimia de cada um de nós com todo o universo. Parecia: mas como ter a certeza? Como pode qualquer certeza estabelecer-se sobre a dúvida? Se interrogássemos este homem, que podia ser brilhante, sobre a natureza da inspiração, ele reviraria os olhos e buscaria no alto indefinido o conteúdo das suas definições». In Maria Isabel Barreno, Os Sensos Incomuns, 1993, colecção Campo da Palavra, Grande Prémio do Conto, Editorial Caminho, 2008, ISBN 978-972-210-886-7.

Cortesia ECaminho/JDACT