Ensaios de História Medieval. Homenagem a Magalhães Godinho
«O Cantar dos infantes de Lara sempre impressionou vivamente os seus ouvintes e seus leitores.
Não apenas pelo dramatismo das suas situações, mas também pela violência com que
agem os seus personagens e sobretudo porque descreve costumes considerados radicalmente
opostos aos actuais e que, por isso, não podem deixar de causar espanto e surpresa.
Alguns dos elementos que sempre foram notados pelos leitores e comentadores relacionam-se
com o sangue e com o papel da mulher na narrativa. Aquele, derramado em profusão,
considerou-se indício de barbarismo próprio de povos selvagens e guerreiros. Seria
normal nesse contexto. O papel da mulher atenuava-se, de certa maneira, pela
evidente antítese dona Lambra / dona Sancha, cuja oposição se interpretava em função
do exagero literário. Em contraste com isso, o papel dos jovens, por exemplo, não
suscitava nenhum reparo especial. Por outro lado, o modelo épico, cujo representante
máximo era, consciente ou inconscientemente, a Chanson de Roland, projectava-se sobre o cantar, para o interpretar como uma narrativa
de fronteira, destinada a transfigurar literariamente o eterno combate entre cristãos
e muçulmanos. Ora uma leitura um pouco mais atenta do texto, sobretudo nas
versões mais antigas, permite atribuir um significado decisivo a certos
pormenores, e assim descobrir para o conjunto da estória, um sentido bastante diferente. De facto, na minha opinião,
não se trata de uma narrativa épica de fronteira, mas da dramatização de uma
vingança familiar. São justamente os pormenores baseados na estrutura do parentesco
que lhe dão a chave interpretativa e que permitem atribuir sentido claro às oposições
e aos valores em causa. Com efeito, quando se atenta no parentesco dos personagens,
verifica-se que os sinais do sangue, das antíteses masculino / feminino e jovem
/ adulto se inserem num sistema de signos perfeitamente coerente e de uma
grande intensidade. Pelo contrário, a oposição cristãos / muçulmanos e até o próprio
tema da guerra se tornam perfeitamente secundários. São apenas o cenário de um drama
cujos motivos não dependem do antagonismo étnico-religioso. A vingança é, obviamente,
o tema central. A implacável reparação que se exige em virtude da ofensa mostra
a sua enormidade. De facto, a simples descrição da ofensa não permitiria só por
si, a um leitor moderno, compreender a sua tremenda gravidade, se não desencadeasse
um drama tão violento. Ao examinar as estruturas do parentesco e as relações pessoais
que elas tipificam atingimos, assim, alguns domínios da mentalidade dos guerreiros
da meseta castelhana no período da alta Idade Média, que, de outra maneira, dificilmente
se poderiam descrever e reconstituir. Apesar de a estória, envolver indissoluvelmente todos os aspectos que pretendemos
examinar, temos de os separar entre si, para conseguirmos apreender o seu alcance.
Por isso, veremos sucessivamente as relações de parentesco, o papel das mulheres,
o papel dos jovens e o papel do sangue.
O parentesco
Pode-se notar em primeiro lugar, que a narrativa associa
dois grupos de parentes unidos por um matrimónio: de um lado, Sancha Vasques com
seu marido, Gonçalo Gustioz, e os filhos de ambos; do outro, dona Lambra, prima
do conde Fernão Gonçalves, e seu marido, Rui Vasques, ao que parece sem filhos.
Os dois grupos de parentes estão unidos por um estreito vínculo de consanguinidade:
Rui Vasques é irmão de Sancha Vasques. O ponto de partida do cantar situa-se
durante a cena das bodas de dona Lambra com Rui Vasques. O primeiro indício do clima
de oposições surge com as manifestações de vivo prazer com que dona Lambra aplaude
as proezas de seu primo Álvaro Sanches no jogo do tavolado, ao ponto de afirmar
que não lhe negaria o seu amor se não fora o parentesco que os unia. Desabafo que
causa o maior escândalo entre os parentes de Rui Vasques, noivo de dona Lambra,
sobretudo os jovens filhos de sua irmã Sancha Vasques. A rivalidade entre os dois
grupos de parentes exprime-se então por uma proeza não menor do mais jovem
sobrinho do noivo, depois pelas agressões verbais entre os clãs, a que se segue
a morte violenta de Álvaro Sanches às mãos dos sete infantes, e a agressão sangrenta
entre o mais novo deles e seu tio Rui Vasques». In José Mattoso, Naquele Tempo,
Ensaios de História Medieval, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2009, ISBN
978-989-644-052-7.
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