Ensaios de História Medieval. Homenagem a Magalhães Godinho
«(…) Verifica-se, assim, que o casamento de dona Lambra
com Rui Vasques acabava de unir dois clãs inimigos, ou que se tornaram tais, no
momento das bodas. O que devia ser a sua aliança reacendeu ou desencadeou a
inimizade. Tal é o que acontece frequentemente nas sociedades cognáticas: a
total igualdade de direitos do ramo masculino e do ramo feminino, por um lado,
e, por outro, o vigor dos laços de consanguinidade, faz com que o casamento se torne
um momento de alto risco, sobretudo para o grupo de guerreiros. Por isso,
preferem, frequentemente, o rapto. Quando o casamento resulta do acordo entre
os parentes, terá de ser precedido de numerosas conversações, contactos,
promessas, garantias, rodeadas de rituais sagrados que afastem os espíritos da
inimizade e da discórdia, que sempre opõe os guerreiros de sangue diferente. As
bodas deveriam então ser um momento de paz porque selam o acordo já antes
estabelecido. Note-se, por outro lado, que Rui Vasques toma partido pelo clã da
noiva: intervém na refrega para agredir o sobrinho materno, em vez de o
defender. Dado que o narrador se coloca do ponto de vista dos sete infantes,
significa isto que censura o facto de Rui Vasques preferir o bando de sua mulher
em vez do de sua irmã. A aliança fá-lo trair a consanguinidade. O
desenvolvimento da narrativa não faz mais do que acentuar a irredutibilidade
das oposições e o insucesso das tentativas que depois se vêm a fazer para
restabelecer a paz. De nada vale o papel pacificador dos chefes de linhagem, ou
seja do conde Fernão Gonçalves de um lado e de Gonçalo Gustioz do outro,
primeiro por ocasião das bodas, e depois da segunda confrontação, ou seja, quando
o mais jovem dos infantes mata o criado de dona Lambra. A persistência da aliança
de Rui Vasques com dona Lambra, que se considera só por si uma traição à sua
própria família, desde o momento em que ele agride o jovem Gonçalo Gonçalves,
atinge depois o auge com a cilada, da qual resulta a morre dos sete infantes
pelos guerreiros de Almançor. Esta apresenta-se, como a pior, a mais hedionda e
mais reprovável das traições. Daqui só pode resultar o castigo implacável de
Rui Vasques e da mulher que o instigou, dona Lambra.
Por outro lado, pode-se também notar que as
obrigações de Rui Vasques para com os sobrinhos resultavam não apenas da
consanguinidade, mas também, e talvez sobretudo, pelo facto de ser o seu tio
materno. Como se sabe, embora através de testemunhos colhidos quase sempre nas
sociedades do Norte da Europa, o tio materno exerce frequentemente a função de
educar os filhos da irmã. Nas famílias guerreiras, tem-nos em sua casa e
inicia-os no uso das armas. Assim acontece também com Rui Vasques, ao trazer os
sete infantes para sua casa, depois da primeira cena. Não faz mais do que
retomar o papel que sempre devia ter tido. Por isso mesmo, é ainda mais
reprovável a cilada que lhes arma e lhes causa a morte. Coloca-se de novo na
escala máxima da traição: não só injuria o seu próprio sangue, como infringe as
obrigações de tutor ou de segundo pai. Neste contexto, é um tanto surpreendente
a função desempenhada pelo vingador, Mudarra Gonçalves, pelo duplo facto de ser
um bastardo, não inteiramente consanguíneo dos infantes, e por ser filho de uma
mulher de raça diferente, a moura irmã de Almançor. O significado é evidente:
mais do que a identidade do sangue, importa a integração nos interesses e
valores da família. A isso não obsta, sequer, o facto de ser filho de uma
moura, ou seja, de ser parcialmente de sangue não cristão. O bastardo, filho de
uma aliança livre e episódica, pode, portanto, ao assumir os interesses da
família, desempenhar um papel semelhante aos filhos legítimos. O papel de
Mudarra constitui, pois, como que um argumento a fortiori para apontar os deveres dos parentes consanguíneos. É
possível que este papel assim atribuído a um bastardo resulte, porventura, de
um acrescento a um texto primitivo. De qualquer maneira, a estrutura do cantar
exige um vingador ou uma vingança, e não se vê quem poderia desempenhar esse
papel, tendo morrido rodos os filhos de Gonçalo Gustioz.
Diga-se de passagem, esquecendo agora os problemas
do parentesco, que a aliança com uma moura e o papel francamente simpático de
Almançor, sobretudo nas versões mais antigas, aponta para uma redacção anterior
à difusão do espírito de cruzada. O antagonismo com os muçulmanos é claramente
acidental, e, de toda a maneira, na economia da narrativa, muito menos
relevante do que a oposição entre os clãs de dona Sancha e de dona Lambra. Admitindo,
nesta hipótese, o carácter primitivo da parte do cantar que tem Mudarra Gonçalves
como principal protagonista, terá então de se concluir que a coesão parental é
um problema mais simbólico do que material, ou seja, que o parentesco
espiritual (como o que possa ser criado, inclusive, pela adopção) tem, nas
instituições arcaicas da família castelhana, um valor superior ao do parentesco
pelo sangue, apesar de, por outro lado, ele desempenhar um papel tão relevante».
In
José Mattoso, Naquele Tempo, Ensaios de História Medieval, Círculo de Leitores,
Temas e Debates, 2009, ISBN 978-989-644-052-7.
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