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Criada do conde Henrique. 1147
«(…)
Lisboa, Outubro de 1147
Durante algum tempo, somos como animais
ferozes, matamos e morremos até que alguém vença. Enquanto lutamos, é imparável
esse instinto que avassala a alma humana, e lá vamos doidos. É assim com todos,
nós também fizemos coisas destas, a crueldade está bem distribuída. Gente
moura, gente do Norte, gente do Sul, do Minho ou da Flandres, de Córdova ou de
Marrocos, somos todos duros quando combatemos, julgamos que expurgamos a terra
do mal que vemos nos outros, mas apenas perpetuamos um ciclo infindável de
violência e vingança. Foi Arnaldo de Aerschot, que no início eu julgara o mais
abrutalhado, quem conseguiu suspender a ceifeira do Diabo, a espada daquele
Belzebu desaustinado. Aos gritos e à paulada, domesticou a fúria dos soldados,
até que todos pararam, com a respiração ofegante e o juízo de regresso.
Fod…, gritou ele. Até que enfim! A
suspensão da matança ressuscitou a civilização, mas morreram mais de mil mouros
nesse dia, mortes inúteis, pois a cidade era nossa, nenhum muçulmano lutava já,
as armas eram atiradas para o chão, os haveres reunidos no castelo, eles
queriam era que aquilo acabasse, para pararem o choro dos filhos, para lhes poderem
dar de comer e adormecê-los à noite sem medo. Queridos filhos e netos, os
homens e as mulheres são iguais em todo o mundo, aguentam a guerra até certo
ponto, mas depois disso só querem é que termine, fazem o que for preciso, pois
há coisas mais importantes do que dominar uma cidade.
Ao final da tarde, regressei
exausto ao nosso acampamento, onde a minha esposa, Maria, me recebeu. Foi nos
braços dela que voltei à vida. Uma sensação de irrealidade e de falta de
pertença ainda me invadia, quando ela se aproximou de mim a sorrir. Nos meus
ouvidos zurziam o tinir das espadas e gritos infernais, os meus olhos ainda
viam labaredas enormes, clarões enchiam-me o espírito. Estava repleto de memórias
de dor e horror: mastodontes irados a degolarem velhos magros, lanças a
perfurarem barrigas, sonâmbulos sangrentos a gemerem no chão. Mas Maria
abraçou-me e foi o cheiro do seu cabelo e o toque das suas mãos que me
ressuscitaram para um mundo diferente, o meu mundo de amor e paz. Então, fui
lavar-me, vestir outras roupas e adormeci algum tempo ao lado dela. Quando
acordei, comi e bebi devagar, para o meu estômago digerir os alimentos sem os
recusar. Por fim, perguntei a Maria: o rei!
Ela encolheu os ombros: está com
a francesa. Mafalda da Sabóia exigia que Chamoa marchasse para Coimbra de
imediato, mas Afonso Henriques recusara, não podia dispensar carroças, havia
muito a fazer em Lisboa. Chamai a vossa irmã e os outros, pedi. E o rei.
Pouco a pouco, na minha tenda
apareceram as pessoas de quem eu gostava. Entraram Chamoa, Teresa Celanova, a
minha meia-irmã Elvira Viegas, dona Justa e a princesa Zaida. Vós sois
bem-vindos também!, exclamei. Vira Pêro e Gualdim Pais à porta da minha tenda e
incentivei-os a entrarem, reparando que o meu sobrinho só tinha olhos para a
minha irmã Elvira Viegas. É a mais bela mulher que conheço, murmurou ele. Sorri,
contente. O nosso alferes estava enamorado, prestes a colocar um ponto final
numa bem-sucedida lista de troféus femininos. Onde está o Mem?, perguntei a
Chamoa. Ela resmungou: deve ter ido às moçárabes. A minha cunhada tentava espicaçar
Zaida com ciúmes, mas esta não mostrou qualquer incómodo, o que me levou a
pensar que o destino do antigo almocreve não se afigurava muito risonho.
Têm de aproveitar, aprovou a
princesa moura». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das
Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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