quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Filho de Lorenzo de Medici, o Magnífico, Giovanni di Lorenzo de Medici recebeu a tonsura aos sete anos, e aos oito foi transformado em abade de Font Douce, em França. Aos nove alcançou a abadia de Passigano…»

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«(…) Ao mesmo tempo que decorriam em Lisboa os preparativos para a largada das naus com os presentes destinados ao Sumo Pontífice, procedia-se em Roma aos trabalhos de recepção à comitiva do rei de Portugal. Segundo ordem do Papa, nenhum cardeal do consistório, nenhum bispo do governo da Santa Sé, sequer o mais desprezível sacerdote da cúria romana, estava autorizado a permanecer à margem da preparação da festa de acolhimento à embaixada portuguesa. Para o chefe da cristandade, todos tinham o dever e a obrigação de trabalhar na causa e, chegada a hora, de receber os portugueses com a dignidade devida a quem, ido de longa distância, se propunha contribuir para a expansão territorial da Igreja e o reforço da sua extraordinária fortuna e o da respectiva família. E ameaçou com severa punição pelo cometimento de pecado de ofensa, a si e a Deus, todo aquele que incorresse no delito de desobediência.
Embora nunca se houvessem visto ou contactado, a verdade é que Leão X sabia como poucos que Manuel I, tal como ele próprio, tinha tanta devoção à Igreja e ao Altíssimo, quanto amor ao poder e à luxúria. Para ambos, a fartura e os prazeres da vida sobrepunham-se em qualquer circunstância às exigências do ascético rigor moral, divino e humano. E se, de igual modo o monarca português estava convencido de que viera ao mundo para servir a Deus, e por vontade de Deus governar um reino, também o Sumo Pontífice de Roma não duvidava da intervenção do Espírito Santo na escolha da sua pessoa para assistir a Igreja e dela se prover. Aliás, não terá sido por acaso que o homem, logo após ter ocupado a cátedra de S. Pedro e recebido do consistório a poderosa tiara, anunciou ao mundo cristão o lema que lhe serviria de base à sua vida de pastor de almas: uma vez que Deus nos confiou o pontificado, vamos aproveitá-lo!
A frase, proferida sob o sintoma de incontrolável estado de ebriedade mental, chocou profundamente os que naquela altura, embora poucos mas corajosos, como Erasmo ou Lutero, consideravam a cúria de Roma uma repulsiva estrumeira sobre a qual se alimentavam e se governavam bispos e cardeais simoníacos, sacerdotes arruaceiros, sacerdotes rapaces, sacerdotes homossexuais, sacerdotes corruptos, todos eles promotores da ofensa; todos eles fomentadores do vício e da intriga. Críticos, acríticos e partidários perceberam também e de imediato, como sinais divinos na clareza dos céus, que o Papa recém-eleito iria empenhar-se mais no auxílio ao esplendor obsceno da Igreja e ao abono da sua enorme fortuna do que desviar a Igreja da desordem dos séculos ou fornecer aos fiéis um novo e purificador alimento espiritual, em ordem a evitar o desencanto e o tresmalho de muitas ovelhas do rebanho.
Filho de Lorenzo de Medici, o Magnífico, Giovanni di Lorenzo de Medici recebeu a tonsura aos sete anos, e aos oito foi transformado em abade de Font Douce, em França. Aos nove alcançou a abadia de Passigano; aos onze entregaram-lhe a lendária abadia de Monte Cassino; aos catorze, em segredo, foi elevado à condição de bispo, pelo Papa Inocêncio VIII. Além de tantos e tão sagrados benefícios que lhe couberam em sorte, Giovanni soube ainda colher da sua família o gosto pelo fausto. Foi de resto pelo dinheiro que os Medici ascenderam ao mais alto patamar da nobreza florentina; foi pela condição económica que se sentaram algumas das suas mulheres em tronos reais; foi enfim pela riqueza que instalaram na cátedra pontifícia, a nove de Março de mil quinhentos e treze, o jovem Giovanni Medici, com apenas trinta e sete anos de idade...
Por tudo isto não constituiu espanto que o Sumo Sacerdote começasse por anunciar a intenção, embora implícita, de sobrepor o seu interesse material e o do grémio da cristandade ao valor da fé, da exaltação da glória a Cristo e de honra a Deus. E por tudo isto também não causou surpresa que tivesse exigido à cúria romana, a todos quantos dela faziam parte, a entrega sem limites ao acolhimento da comitiva portuguesa. Leão X podia desconhecer o que Manuel I lhe ia enviar pelos seus representantes; mas não lhe restavam dúvidas de que a monta dos presentes do monarca português ultrapassaria, e muito, o das ofertas que os reis da Europa costumavam mandar-lhe por intermédio de comitivas menores e de embaixadores medíocres. Sabendo pois da generosidade do ocupante do trono de Lisboa e da intenção de esse soberano em assombrar a Igreja, em particular, e a Europa, em geral, com o ofertamento de bens raros e preciosos, como se os tivesse em excesso ou não fizessem falta ao reino de Portugal, Leão X tomou-se de cuidados e, com a soberba frialdade que o caracterizava, deu instruções ao clero para que se unisse e preparasse uma recepção aos estrangeiros jamais vista na Cidade Santa». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
                                                                                                                 
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