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«(…) Ontem à noite, ao concluir a
oração de matinas, pedi autorização à prioresa para passar o dia de hoje a rezar
no meu claustro até chegar Maria para me visitar. Receava não me sentir bem
porque as emoções por vezes pregam-me partidas, provocando-me desmaios onde quer
que me encontre. A prioresa, com a sua bondade infinita, aceitou que me recolhesse
no silêncio da minha clausura, donde posso igualmente louvar e adorar a Deus. Agradeci
o seu gesto maternal e recordei com tristeza como era assistir a um ofício
divino prestes a desmaiar. Não foi necessário fazer muito esforço para o
lembrar. Sabia-o de cor, mas, mesmo sabendo-o, recordei como a angústia me ia roubando
o ar e me era impossível respirar, como se uma força gigantesca me oprimisse a garganta
e me atingisse no estômago, turvando-me o entendimento, e mesma sensação que sabia
que a minha mãe experimentava quando sentia que escorregava sem conseguir parar
naquele abismo sem fim.
A imagem da minha desolação, experimentara-a
na carne com a morte de cada um dos meus filhos. No meio de um louco aturdimento,
era obrigada a encabeçar os seus cortejos fúnebres vestida de luto rigoroso. Esmagada,
mas erguida, tinha de aparentar força, apesar de por dentro ir morrendo de tristeza
à medida que avançava atrás dos seus esquifes. Sem conseguir mexer os pés,
fazia um esforço sobre-humano a cada passo para continuar a avançar. Dentro dos
meus ouvidos, uma voz monótona e absurda ia-me repetindo até ao cansaço que não
me desse por vencida. Nessas provações que me coube viver, parecia-me que a minha
vida deixara de ter sentido. Sem saber como, ou talvez porque dentro da minha
mente via reflectida a imagem de minha mãe, tirava forças do fundo da minha alma,
e à cabeça de toda a minha corte e do meu povo, usando forças que desconhecia e
revelando uma coragem que não sentia, tal como se exige a uma rainha,
continuava sem claudicar.
Lembro-me de, quando tive de voltar
a ser mãe, além de avó do único neto que restava a meu lado, dezoito dias depois
de seu pai ter morrido, o meu último filho, ...ou quando, ao morrer meu esposo e
ao ficar viúva, tive de assumir com coragem a regência do reino em nome do pequeno
herdeiro, para salvar Portugal de voltar a ser, no futuro, um território de Espanha.
As minhas recordações não chegam sozinhas, fazem-no acompanhadas de nostalgia. A
rapidez com que me invadem deixa a sua marca furtiva. Ainda mais depressa me
acometem as emoções que se anunciam depois delas com a urgência do inesperado. A
contundência do seu predomínio faz fracassar qualquer possibilidade de indiferença,
impedindo-me de as esquecer... De um ponto afastado, contemplo a missa que se está
a celebrar. O cónego ergue a santa eucaristia com unção, entre as mãos. Com veneração,
ajoelho-me aos pés do meu leito e voo veloz com a mente para o pai consagrado e
peço, sobre o meu neto-rei e sobre o reino, a bênção misericordiosa dos céus. As
monjas, com as cabeças reclinadas, meditam sobre o mistério divino. E, enquanto
continuo a observá-las, soam nos meus ouvidos os pequenos carrilhões que
anunciam a consagração do vinho, emudecendo repentinamente tudo.
Mal passaram uns instantes. A
fila de religiosas dirige-se em recolhimento para comungar. O coro enaltece com
as suas vozes angelicais um canto seráfico que parece impregnar de santidade todo
o convento. As monjas regressam em silêncio aos seus genuflexórios. Com a alma alegre,
agradeço ter procurado a solidão do Convento de Nossa Senhora da Boa Esperança,
cujos claustros servem, além disso, de internato onde vêm recolher-se as clamas
e donzelas da nobreza lusitana». In Yolanda Scheuber, Catarina de Habsburgo,
Rainha de Portugal, Ediciones Nowtilus, 2011, Casa das Letras, Oficina do
Livro, 2013, ISBN 978-972-462-077-0.
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