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Coimbra.
Julho de 1117
«(…) Não iria derrotar os
cristãos como fizera Yusuf, o anterior califa e seu pai, que enviara cinquenta mil
cabeças decapitadas às capitais muçulmanas da Andaluzia e mais cinquenta mil
para a Berbéria, como prova da sua vitória em Zalaca onde derrotara Afonso VI. O
califa encolheu os ombros, ninguém ousaria criticá-lo por recuar! Só Taxfin se
iria revoltar. O governador de Córdova podia ter um harém, como o de Ali Yusuf,
e, no entanto, não dormia com mulheres há um ano. Era por essas e por outras que
Ali não gostava dele. Taxfin era um sarraceno da Andaluzia e o califa considerava-o
corrompido pela poesia dos pederastas de Sevilha, pela música mole e dolente da
região. Cem anos já haviam passado e aquela gente ainda fantasiava com a
ressurreição do califado de Córdova. Não eram como ele, um berbere fiel aos
éditos do profeta, mas sim uns degradados pela convivência com cristãos e até
judeus. Judeus instalados no coração de um califado islâmico! Existiam mesmo
alguns muçulmanos que se haviam convertido, como Zaida, a traidora que casara
com Afonso VI e lhe dera Sancho, seu único filho varão. O velho ambicioso intitulava-se
Imperador das Duas Religiões. Fora o próprio Ali Yusuf quem lhe matara o
herdeiro Sancho, em Uclés, e acabara com esse sonho impensável de unir os reinos
cristãos e muçulmanos da Península sob um único monarca.
Contudo, para Ali Yusuf os cristãos
eram menos perigosos do que o governador de Córdova e a sua família de
mulheres. Taxfin ia dar trabalho a convencer. O califa teria de usar o segredo
que conhecia para o paralisar, pois não queria matá-lo, pelo menos para já. Ainda
necessitava dos seus préstimos para a guerra, embora pudesse acabar com ele num
instante. Olha para o fundo da tenda, onde está um homem de pé, atrás de um
biombo. É um persa alto e magro, envolto num manto branco, apertado à cintura
com um cordão vermelho, e com um capuz a cobrir-lhe a cabeça. Veio de longe
para espalhar a morte e faz isso muito bem. Na Pérsia, chamavam-lhe fedayin
e o califa não sabe o seu nome próprio, nem quer saber, mas apenas que ficou
muito mais forte desde a chegada deste homem à sua corte, meses atrás. Chama-o e
ordena-lhe: Mata todos os doentes e deixa os cadáveres a apodrecerem ao sol,
para os cristãos adoecerem com a pestilência que nos pegaram.
O fedayin sai da tenda em
silêncio, vai fazer o que tanto gosta. O califa sente um arrepio e tem saudades
da sua Marraquexe e de tâmaras. Grita pela criada, mas a rapariga não aparece. Quem
surge é Taxfin, de rompante, aos gritos: senhor, e a vossa promessa? Durante a
corrida, o governador de Córdova concluiu que não se podia revoltar contra o
califa. As suas tropas eram apenas um quinto das do almorávida, não iam
enfrentar Ali Yusuf às portas de Coimbra. Entrou disposto a quase tudo, mas não
a guerrear o outro, não era doido. Recordou os planos de ataque: primeiro às
muralhas, junto a uma das portas, onde as pedras estão soltas; depois a investida
sobre a alcáçova. Para o rebater, o califa referiu a doença intestinal, a desmoralização
do exército, a sua preferência por guerrear Afonso I de Aragão, perto de Saragoça.
Taxfin notou-se, enojado, que havia pingos de gordura na barba do califa, e
depois alarmou-se quando verificou que não estava ninguém atrás do biombo.
Cauteloso, examinou a tenda com os olhos, procurou a Morte com Duas Pernas. Mas
atrás de si estava apenas Abu Zhakaria, que nunca impunha condições para a sua
lealdade cega, e tinha a mão no alfange.
Taxfin respirou fundo e enfrentou
o califa: senhor, parti com as vossas tropas, mas deixai-me ficar, tomar Coimbra,
recuperar a minha mulher e as minhas filhas! O berbere de Marraquexe perguntou,
sem o olhar: vossas filhas?» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal,
Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
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