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Coimbra.
Julho de 1117
«(…) Chegaram à cidade nessa
mesma noite, junto com as tropas, e durante aqueles vinte dias o pai
transformou-se em cozinheiro. Abu Zhakaria descobrira que ele fazia boas
açordas, bom escabeche e saborosas almôndegas, e obrigava-o a trabalhar a
dobrar. Apesar de exausto, o pai poupava Mem dos esforços mais pesados. Prometi
à vossa mãe, no dia da morte dela, que ides chegar homem inteiro! Não deixo que
eles vos rebentem com as costas à vergastada! Para Mem, o pai era mais do que um
pai, era o seu único amigo. Conversavam sobre as cidades que visitavam, as
manias dos fregueses, o que se passava na taifa de Badajoz, que dominava
Santarém e Lisboa, ou no Condado Portucalense, onde mandava uma mulher chamada
Teresa, que era filha de Afonso VI. E, nessa manhã, o pai morrera à sua frente
e Mem estava perdido.
Na véspera, os berberes tinham
insinuado que fora o almocreve quem deitara veneno na água, mas isso era
absurdo, como todos perceberam quando o pai também adoeceu. Um dos chefes
berberes obrigou os doentes a afastarem-se para uma zona junto ao rio, dizendo que
assim não contaminariam os saudáveis. O pai, encolhendo os ombros, dissera a
Mem que não se preocupasse. Porém, durante a última noite, Mem verificara que o
pai continuava na mesma, mas havia outros que pareciam em muito mau estado.
Tinham febre e o seu número aumentava, alarmando os que os vigiavam.
Pela manhã, mal o Sol nasceu, um
dos berberes havia ordenado aos doentes que se fossem lavar ao rio, mesmo os
que tinham febre, e que obrassem por lá, o mais afastados possível. Via-se que
os guerreiros estavam com medo e queriam-nos longe. O pai já não tinha vómitos,
embora ainda sentisse dores. Sorrindo, sugerira a Mem que fosse nadar, enquanto
ele fazia as suas necessidades. Nunca ficava à vontade nestes momentos, e o rapaz
viu-o procurar uns arbustos, para se poder aliviar atrás deles. Mem tirara a camisa
de linho, os calções e as alpercatas, e lançara-se ao rio. A água não estava
muito fria e ele sabia nadar, por isso deu umas braçadas, sentindo-se límpido e
puro, cercado por aquela água saborosa. Ficou uns minutos por ali, a boiar, o
cérebro vazio, só os seus sentidos a apreciarem o momento.
Quando se ergueu e olhou para e
margem, percebeu que algo de estranho estava a acontecer, pois viu um homem alto,
todo vestido de -branco, com uma alfange na mão a degolar um doente. Observou-o
a dar mais uns passos, e quando outro doente, nu, sair: da água, o carrasco
branco avançou e, gesto brusco, fez-lhe saltar a cabeça com uma rapidez
impressionante. Depois correu, deu um salto por cima da vegetação, e matou
outro enfermo. Com puro pânico, Mem olhou para os arbustos, atrás dos quais
estava o pai, nos seus afazeres íntimos. O torcionário de branco começara a
eliminar os doentes, um a um, e o terror do rapaz cresceu quando o viu
aproximar-se da zona para onde o pai fora. Mem desatou a nadar, mas agora
fazia-o contra a corrente, e por isso demorava mais. Ainda pensou em gritar,
para chamar a atenção do pai, mas temia que o maldito de branco o ouvisse e
viesse direito a ele, por isso só nadou.
Quando chegou à margem,
encontrava-se mais longe do pai, vinte metros acima, e estava cansado do
esforço. Levantou-se e tentou correr, vendo que o matador de branco acabara de
degolar outro desgraçado, numa elevação apenas a cinco metros do arbusto onde o
pai estava. O coração de Mem começou a bater desordenadamente, o pai ia ser
atacado! Decidiu arriscar. Levou dois dedos à boca, imitando o assobio usual do
seu progenitor quando chamava pelos jumentos. De seguida, escondeu-se atrás de
um arbusto, pois o facínora ouvira-o e virara a cara na sua direcção, limpando
a espada de sangue. Quando, instantes mais tarde, Mem espreitou entre os ramos,
o seu corpo paralisou, atingido pelo medo mais profundo que alguma vez sentira.
O pai saía de trás de uma pequena oliveira, a sorrir para Mem, pois ouvira o
assobio, e ia dizer qualquer coisa quando o carniceiro saltou para junto dele e
elevou o alfange, puxando o braço atrás». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal,
Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
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