domingo, 17 de fevereiro de 2019

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «O pai saía de trás de uma pequena oliveira, a sorrir para Mem, pois ouvira o assobio, e ia dizer qualquer coisa quando o carniceiro…»

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Coimbra. Julho de 1117
«(…) Chegaram à cidade nessa mesma noite, junto com as tropas, e durante aqueles vinte dias o pai transformou-se em cozinheiro. Abu Zhakaria descobrira que ele fazia boas açordas, bom escabeche e saborosas almôndegas, e obrigava-o a trabalhar a dobrar. Apesar de exausto, o pai poupava Mem dos esforços mais pesados. Prometi à vossa mãe, no dia da morte dela, que ides chegar homem inteiro! Não deixo que eles vos rebentem com as costas à vergastada! Para Mem, o pai era mais do que um pai, era o seu único amigo. Conversavam sobre as cidades que visitavam, as manias dos fregueses, o que se passava na taifa de Badajoz, que dominava Santarém e Lisboa, ou no Condado Portucalense, onde mandava uma mulher chamada Teresa, que era filha de Afonso VI. E, nessa manhã, o pai morrera à sua frente e Mem estava perdido.
Na véspera, os berberes tinham insinuado que fora o almocreve quem deitara veneno na água, mas isso era absurdo, como todos perceberam quando o pai também adoeceu. Um dos chefes berberes obrigou os doentes a afastarem-se para uma zona junto ao rio, dizendo que assim não contaminariam os saudáveis. O pai, encolhendo os ombros, dissera a Mem que não se preocupasse. Porém, durante a última noite, Mem verificara que o pai continuava na mesma, mas havia outros que pareciam em muito mau estado. Tinham febre e o seu número aumentava, alarmando os que os vigiavam.
Pela manhã, mal o Sol nasceu, um dos berberes havia ordenado aos doentes que se fossem lavar ao rio, mesmo os que tinham febre, e que obrassem por lá, o mais afastados possível. Via-se que os guerreiros estavam com medo e queriam-nos longe. O pai já não tinha vómitos, embora ainda sentisse dores. Sorrindo, sugerira a Mem que fosse nadar, enquanto ele fazia as suas necessidades. Nunca ficava à vontade nestes momentos, e o rapaz viu-o procurar uns arbustos, para se poder aliviar atrás deles. Mem tirara a camisa de linho, os calções e as alpercatas, e lançara-se ao rio. A água não estava muito fria e ele sabia nadar, por isso deu umas braçadas, sentindo-se límpido e puro, cercado por aquela água saborosa. Ficou uns minutos por ali, a boiar, o cérebro vazio, só os seus sentidos a apreciarem o momento.
Quando se ergueu e olhou para e margem, percebeu que algo de estranho estava a acontecer, pois viu um homem alto, todo vestido de -branco, com uma alfange na mão a degolar um doente. Observou-o a dar mais uns passos, e quando outro doente, nu, sair: da água, o carrasco branco avançou e, gesto brusco, fez-lhe saltar a cabeça com uma rapidez impressionante. Depois correu, deu um salto por cima da vegetação, e matou outro enfermo. Com puro pânico, Mem olhou para os arbustos, atrás dos quais estava o pai, nos seus afazeres íntimos. O torcionário de branco começara a eliminar os doentes, um a um, e o terror do rapaz cresceu quando o viu aproximar-se da zona para onde o pai fora. Mem desatou a nadar, mas agora fazia-o contra a corrente, e por isso demorava mais. Ainda pensou em gritar, para chamar a atenção do pai, mas temia que o maldito de branco o ouvisse e viesse direito a ele, por isso só nadou.
Quando chegou à margem, encontrava-se mais longe do pai, vinte metros acima, e estava cansado do esforço. Levantou-se e tentou correr, vendo que o matador de branco acabara de degolar outro desgraçado, numa elevação apenas a cinco metros do arbusto onde o pai estava. O coração de Mem começou a bater desordenadamente, o pai ia ser atacado! Decidiu arriscar. Levou dois dedos à boca, imitando o assobio usual do seu progenitor quando chamava pelos jumentos. De seguida, escondeu-se atrás de um arbusto, pois o facínora ouvira-o e virara a cara na sua direcção, limpando a espada de sangue. Quando, instantes mais tarde, Mem espreitou entre os ramos, o seu corpo paralisou, atingido pelo medo mais profundo que alguma vez sentira. O pai saía de trás de uma pequena oliveira, a sorrir para Mem, pois ouvira o assobio, e ia dizer qualquer coisa quando o carniceiro saltou para junto dele e elevou o alfange, puxando o braço atrás». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
                                         
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