Cortesia
de wikipedia e jdact
Leonor.
1755-1770
«(…) Foi nesse preciso momento que um
estranho rugido vindo da terra tomou conta de tudo. Maria largou a chávena que
tinha nas mãos, e o bule e a leiteira, parecendo dotados de vida própria,
caíram de repente do toucador, desfazendo-se em cacos no chão. Que foi, mana? O
que é isto?! O serviço partiu-se! Que barulho faz a carruagem de nosso pai! Ou
será El-Rei em mil coches?,
gritou Leonor, já aterrorizada e sem perceber o que se estava a passar. Mãe…,
Feliciana! Tenho medo!, gritou Maria, escondendo-se atrás da porta. Enquanto
Leonor hesitava entre salvar o resto do serviço e acudir à irmã, o toucador
tombou inteiro à sua frente e o espelho estilhaçou-se estrondosamente no chão.
A pequena deu um pulo para trás e começou a chorar. Leões!, gritou Maria, são
leões, estão zangados, a rugir! Quero a mãe! Abraçadas uma à outra, Leonor e
Maria sentiram o chão a tremer, sacudindo os móveis de um lado para o outro.
Correram apavoradas para debaixo da cama, gritando por alguém que lhes
acudisse. Passado um instante, que lhes pareceu eterno, o pai e um criado
entraram no quarto, esforçando-se por manter o equilíbrio. Com movimentos
vigorosos e rápidos conseguiram, por fim, arrancá-las do abrigo improvisado. O
que foi, meu pai, o que foi?, perguntaram em coro, entre lágrimas de pânico e
gritos descontrolados. Sem tempo para lhes responder, o pai João pegou em
Leonor, que salvara a boneca Perpétua, enquanto Francisco José Castro, o mais
antigo empregado da Casa de Alorna, agarrava em Maria. Vamos daqui, depressa! disse
o pai João. Lá para fora! Aos tropeções pela escada abaixo, alcançaram a custo
o pátio
do palácio.
Pousando Leonor no chão, dom João exclamou a salvo!,
e correu noutra direcção. Leonor tremia e Maria soluçava sem parar, agarrada à
irmã. Tinham passado quatro longos minutos mas os brutais soluços da terra, que
ora abrandavam ora se reavivavam, pareciam não querer parar de arremessar as
coisas de um lado para o outro com uma intensidade alucinante. Os escudeiros,
os lacaios, os cocheiros e os outros criados da Casa de Alorna já se
encontravam no pátio. João contou-os: trinta e quatro, não faltava ninguém. Misericórdia!
Misericórdia! Que Deus tenha piedade de nós!, gritava a ama, por entre o clamor
geral, segurando Pedro junto ao peito. Estava aterrorizada. Dona Leonor
apareceu finalmente por uma das portas laterais do palácio, vinha desarranjada,
sem cabeleira e apenas de saiote por cima da camisa, correu a abraçar as
filhas, tentando em vão acalmá-las. Já passou, Leonor, já passou, Leonorzita…
Vamos, Maria, querida, rezem as duas para que Deus tenha piedade de nós! As
duas meninas ajoelharam-se no chão do pátio e, unindo as mãos, rezaram com
fervor. Leonor pedia a intercessão de sua madrinha, Nossa Senhora das Mercês,
soluçando convulsivamente e suplicando-lhe que, de lá de cima, obrigasse Deus
Pai a parar com aquele rugido medonho, vindo da terra, vindo do céu … assim na
Terra como no Céu, repetia.
Descalça, agarrada à boneca, Leonor não entendia nada do
que se estava a passar e sentia-se sufocar de medo. Onde há poucos minutos se
erguiam as cocheiras do palácio, via agora crescer uma enorme nuvem de caliça.
A fachada lateral desaparecera no pó, tal qual nas batalhas das praças da
Índia, onde o avô Alorna fora vice-rei. Nem os tenebrosos rugidos da terra
conseguiam abafar os gritos de dor e de súplica que se ouviam. E o pior estava
para vir: ao relinchar nervoso dos cavalos e ao estardalhaço da carruagem que
tombara no meio do pátio, seguiu-se um estrondo monumental: ruíra a ala norte
do Palácio do Limoeiro. Minha mãe! Não quero mais, não quero mais!, gritava
Leonor, refugiando-se no saiote da mãe e tapando a cara com as mãos. Estamos
salvos!, clamou dom João. Não se afastem, o pátio é suficientemente amplo. Aqui
ficam em segurança. E voltando-se para dois dos criados: vou chamar meu pai e
partir para prestar auxílio a quem precise. Vocês vêm comigo, os outros ficam.
Ainda dom João não acabara de falar, já
o chão recomeçara a tremer. O edifício da frente, que a derrocada do palácio
tornara visível, balançava de um lado para o outro como o mastro de um navio, até
que, com um estrondo colossal, se desfez numa imensa nuvem de terra». In
Maria Lopo de Carvalho, Marquesa de Alorna, Oficina do Livro, 2011, ISBN
978-989-555-554-3.
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