quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

O Arquipélago da Insónia. António Lobo Antunes. «Não me deixes agora que só o meu irmão e eu continuamos na cozinha um diante do outro, à espera, com o cavalo na argola e as luzes da vila…»

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«(…) O padre a mirar a pistola saída sem pressa do bolso e a culatra que deslizou para trás e aceitou uma bala, a buscar auxílio mas nem vozes nem pessoas, deu-lhe ideia que um rafeiro e todavia nenhum bicho nas travessas, só ecos, o dos ramos das nogueiras, um banquito que deslocaram para o ver melhor e os retratos O padre sem que o feitor os notasse, a lagoa fervia como sempre em Março com os girinos novos e abelhas incompletas a aprenderem a ser, o padre para o feitor Para que queres a pistola? e o feitor a persignar-se depois de lhe pedir a confissão Para o ajudar a partir senhor cura não exaltado, respeitoso que o Inferno assusta, quase nenhum olmo vibrou com o primeiro tiro esmagado na cancela, o feitor a ajudar a pontaria com a outra mão Já me absolveu não já? e a disparar de olhos fechados, sentiu o padre de joelhos, ganhou força para abrir um dos olhos, viu-o de cara na terra e como estava absolvido abriu a navalha e cortou-lhe o pescoço até à resistência das vértebras, pensou melhor e trocou os sapatos com os do morto apesar do pé esquerdo difícil de entrar e agora as doninhas e os texugos que o comam, o meu avô zangado Vai entregar os sapatos ao homem para andar como quiser pela vida o meu avô zangado Nunca impeças um defunto de passear onde lhe der na gana e o feitor sob as nogueiras a lutar com os sapatos sem dar com as árvores sequer conforme lhe sucedeu pisar o padre que se sumia na terra e uma mulher de alguidar, mais mulheres, um velhote num monte de lama a fazer corpo com ela, ficaram as pálpebras de fora a seguirem-no iguais às fotografias com enfeites de metal, rosinhas, lírios, de meninas falecidas de mal do peito vibrando a harpa dos pulmões, Celeste, Leonora, Angelina a recortar estrelinhas de papel tossindo sem uma queixa, sepultavam-nas em caixõezitos de cetim branco e os milhafres por cima nas suas voltas quietas, em que travessa da vila te escondes a fitar-me, Maria Adelaide, sem pedir nada, te queixares de nada, a boca duas rendas que tremiam Sinto-me bem levaram-me a visitar-te no hospital e não me lembro da enfermaria, lembro-me do jardineiro a regar canteiros com o polegar na extremidade da mangueira a distribuir a água, de uma pessoa a assoar-se trazendo os biscoitos e as maçãs de volta num cartucho e o jardineiro sem atentar nela ocupado com um caule, Maria Adelaide com tranças para a frente do peito e eu apaixonado pelas tranças, depois do funeral a mãe guardou-as na gaveta e o cabelo seco arrepiava enquanto o feitor, com as nogueiras a estalarem, pensava não haver criatura mais difícil de descalçar que um padre, teve de lutar com os tornozelos para os erguer do chão a fim de que não entrasse numa moldura a culpá-lo Gatuno necessitando de mais tempo para habituar-se à morte Finei-me ao dar conta dos torrões de que a pele era feita e de como os paramentos empalideciam devagar, uma coruja raspou-lhe a nuca e desvaneceu-se numa chaminé a que faltavam bocados, num tom parecido com o do meu pai Não me deixes agora que só o meu irmão e eu continuamos na cozinha um diante do outro, à espera, com o cavalo na argola e as luzes da vila que partem e regressam de acordo com as nuvens mostrando um telheiro, dois telheiros, o recreio da escola onde o vento brincava com um papelinho, agora ponho-te aqui, agora ponho-te ali e o papel de roldão com as folhas coitado, o papel vendo bem uma folha igualmente, de onde virão as folhas que quase não há arbustos digam-me, no pátio cactozitos a crescerem das lajes, uma raposa no pombal numa leveza de mindinhos e o meu pai com o seu Cristo de feira no topo das escadas e o cavalo aguardando-o, dei pelo meu irmão a observar-me consoante se observava a si mesmo no poço, na maleta do padre os instrumentos da missa e uma carta de mulher com flores dentro (que mulher?) os sapatos principiaram a gastar-se na terra, não tardaria nada uma moldura entre as restantes molduras a denunciar o feitor, a chávena sobre o pires, uma empregada a recolher ovos num cabaz e no entanto o meu irmão e eu sozinhos na casa que se alterou permanecendo igual, um pedido às sombras da vila Não me matem se calhar de um camponês que se perdeu no caminho, na carta da bagagem do padre um perfume parecido com o dos baús e no entanto nunca dei pela minha mãe na igreja deserta (o meu avô para o feitor O padre fala contra nós não pode ser) porque não há ninguém tirando o meu irmão e eu e esses bichos da noite de que se desconhece o nome, talvez ginetos ou cachorros selvagens, o meu pai vinha espreitar-me ao recreio da escola como espreitou a minha mãe no cemitério, puxando a cabeça do cavalo que bandeava não na direcção da herdade, da vila onde o meu avô nunca ia, mirava-a de longe de vergasta ao alto para se proteger dos defuntos na voz de há muitos anos Vocês os mortos não me fazem mais mal os olhos embrulhados um no outro num nozinho de pálpebras a recordarem desconfortos e medos, uma criança descalça a desejar um mulo para se sumir na fronteira, a mãe que não perfumava baús, se instalava junto à porta à espera (de quê?) a Filomena doente e ele da rua…» In António Lobo Antunes, O Arquipélago da Insónia, Publicações dom Quixote, LeYa, 2008, ISBN 978-972-203-694-8.
                    
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