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Rainha
que o povo amou. Maria Pia de Sabóia (1847-1911)
«(…) Por tudo isto, não é fácil
destrinçar a realidade da representação que se forjou, perceber a personalidade
de Maria Pia e certos eventos da sua vida. O que dela se afirma é contraditório
e em grande parte uma imagem que não se ajusta à pessoa que realmente foi esta
rainha, imagem que é necessário desconstruir. Se em muitos aspectos foi possível
fazê-lo, depurando-a das camadas sobrepostas de lendas, equívocos,
preconceitos, ressentimentos e lisonjas, nem sempre as fontes o permitiram. O
historiador não é omnisciente e uma biografia desafia-nos sempre com zonas de
sombra que não é possível perscrutar. É bem possível que outra documentação,
nomeadamente de índole privada, venha a aparecer e confirmar, matizar ou refutar
muitas das minhas interpretações.
Luís Espinha Silveira foi o
primeiro a analisar de forma sistematizada a correspondência de dom Luís e dona
Maria Pia depositada na Torre do Tombo e no Palácio da Ajuda (Museu) para
perceber a personalidade de Maria Pia. Utilizo também essas e outras muitas
cartas inéditas escritas e recebidas pela rainha, assim como documentação de
natureza diferente, guardadas no Arquivo da Casa Real da Torre do Tombo mas
também no Arquivo de Estado de Turim, que dona Maria Pia terá levado consigo
para o exílio ou que para lá foram remetidas. Um pequeno núcleo documental do
Arquivo Centrai do Estado, em Roma, forneceu informações sobre o seu funeral.
Encontra-se ainda documentação de tipologia diversa, incluindo mais uma vez
correspondência emitida e recebida por dona Maria Pia, na Biblioteca da Ajuda,
no Arquivo da Universidade de Coimbra e no Arquivo Regional de Ponta Delgada.
Dona Maria Pia escrevia em
italiano para a família de Itália e em francês pouco correcto ao nível da
ortografia para todas as outras pessoas, incluindo o marido e os filhos, que
também se lhe dirigiam nessa língua. Assim sendo, todas as pequenas citações
que faço em português são traduções da minha responsabilidade. Expressões
curtas e claramente compreensíveis foram mantidas no original, mas optou-se, em
geral, pelo resumo e não pela transcrição da correspondência. Nos anos de 1880
e 1890 Carlos I redigia por vezes as suas cartas à mãe em português. Maria Pia
lia e falava português correctamente e escrevia em português (fazendo rever a
grafia) para certas pessoas, como, por exemplo, para Hintze Ribeiro.
Princesa
Maria Pia de Saboia (1847-1862). Família, nascimento e baptismo
A
princesa Maria Pia nasceu em Turim a 16 de Outubro de 1847, no seio da família reinante
de Saboia, a casa donde tinha saído, no século XII, dona Mafalda (ou Matilde), esposa
do primeiro rei português. A menina era neta do rei da Sardenha, Carlos Alberto
Saboia (1798-1849). Na realidade, a sua estirpe era Saboia-Carignano, ramo colateral
da família desde a primeira metade do século XVII. Para se encontrar um rei entre
os ascendentes Saboias de Carlos Alberto, há que remontar a Carlos Manuel, o
Grande, falecido em 1630. Carlos Alberto, duzentos anos depois, faz aceder ao
trono a linha Saboia-Carignano, que descendia de Tomás Francisco, filho segundo
de Carlos Manuel, A ascensão ocorreu pacificamente, por se ter extinto a via masculina
do ramo principal. Dos três reis anteriores, todos irmãos, só um teve
descendência, mas nenhum filho homem: Carlos Manuel IV que reinou de 1796 a 1802,
Vítor Manuel I, rei entre 1802 e 1821, e Carlos Félix, rei de 182l a 1831. À excepção
de Carlos Félix, todos estes mencionados, incluindo o avô de Maria Pia,
abdicaram.
Carlos Alberto, sétimo príncipe de
Saboia-Carignano, que depois de rei irá deixar cair o Carignano, nome que passa
a ser usado por um primo, agora representante do ramo lateral, foi designado herdeiro
do trono da Sardenha por Vítor Manuel I, que, ao abdicar no irmão Carlos Félix,
e porque este também não tinha herdeiros, estabeleceu a sucessão no jovem primo
do ramo Carignano. A escolha desagradou a Carlos Félix, convicto absolutista
que desconfiava do jovem parente educado em França, mas cumpriu a vontade do irmão.
Será uma constante na família Saboia do século XIX, incluindo os dois ramos: a lealdade
entre os seus membros e o respeito total pela vontade do chefe da casa.
Carlos Alberto Saboia, que tão celebrado
será pelos liberais por ter outorgado, em 1848, o Estatuto, isto é, uma carta
constitucional, como Pedro IV fez no nosso país, foi nos primeiros anos do seu reinado
um soberano absoluto. Mas a sua actuação foi contraditória. Num período em que
assumiu a regência na ausência de Carlos Félix terá patrocinado uma revolta liberal,
mas submeteu-se de imediato ao rei. Quando subiu ao trono não instaurou o
liberalismo. Pelo contrário, reprimiu-o violentamente em 1833-1834 e, no exterior,
auxiliou os miguelistas portugueses e os carlistas espanhóis. É só com as convulsões
de 1848, após a promessa de constituição feita pelo rei de Nápoles e depois da
deposição do rei francês (Luís Filipe Orleães), que Carlos Alberto cede às novas
ideias que se expandiam irreversivelmente. Só nesse ano reconhece as monarquias
constitucionais de Portugal e de Espanha, só nesse ano, como se disse, concedeu
uma Constituição ao seu povo. Por convicção? Por táctica? O certo, o que nos importa
frisar, é que quando a sua neta Maria Pia nasceu, filha do príncipe herdeiro Vítor
Manuel e da sua mulher Maria Adelaide Habsburgo, ainda a corte de Turim albergava
um rei absoluto». In Maria Antónia Lopes, Rainha que o povo amou, Dona Maria Pia de
Saboia, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-972-424-718-2.
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