jdact
A Vida Notável de uma Rainha Louca
Infância
Real (Quem não viu Lisboa, não viu
coisa boa)
«(…)
Cinquenta e sete anos antes,
essa mesma praça junto ao rio, o Terreiro do Paço, fora palco de uma imensa
alegria. Era também uma tarde húmida de Inverno. As borrascas subiam o Tejo e a
chuva enchera poças na praça e no cais de mármore junto às águas. A oeste,
localizava-se o palácio da família de Bragança, majestoso e soberbo. Os quartos
e os corredores estavam iluminados por candelabros e velas de sebo, enquanto os
criados transportavam apressadamente recipientes com água quente e roupa de
cama lavada. Uma princesa de dezasseis anos dava à luz a sua primeira criança. Às
seis horas da tarde, quando fez força e gritou pela última vez, nasceu uma
rapariga que, depois de crescer, se tornaria no primeiro monarca feminino da
história portuguesa. De acordo com os costumes, o bebé assomou do corpo da mãe à vista
de uma pequena multidão de padres, cortesãos, ministros, médicos e criados. A
recém-nascida foi recolhida nos braços da sua avó, levada para uma sala
adjacente e apresentada ao avô, o rei João V, e ao pai, o príncipe herdeiro
José, os quais se ajoelharam para agradecer a Deus o bem sucedido parto.
Assim que a notícia foi anunciada,
logo se juntou uma grande multidão no Terreiro do Paço. O ar reverberava com os
aplausos, com o dobrar dos sinos e com os tiros de canhão. Os coches dos
diplomatas estrangeiros depressa chegaram ao palácio. Fui imediatamente à corte,
escreveu o embaixador britânico para Londres nessa mesma noite, porque me
disseram que assim era hábito e tive audiências com a família real para os
felicitar. Recomendo que a carta de felicitações do rei não tarde e que seja
enviada no próximo barco, pois esta corte é muito sensível a tais pormenores. As
celebrações prolongaram-se durante mais três dias, com os foguetes no ar, os
sinos a tocar e as velas nas janelas, que o povo de Lisboa acendia ao
escurecer, iluminando a cidade durante a noite. O Te Deum foi cantado nas igrejas e, a 9 de Janeiro
de 1735, a criança foi levada à capela real e baptizada, com grande pompa e
cerimónia, com o nome de Maria Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita
Joana Bragança.
Maria nasceu na cidade mais rica e opulenta
da Europa, uma Lisboa enriquecida pelas minas de ouro e de diamantes do Brasil. Frotas carregadas de pedras e metais
preciosos chegavam do Rio de Janeiro, todos os anos, uma riqueza que foi usada
pelo seu avô para engrandecer a Igreja portuguesa de modo a esta poder
rivalizar com o Vaticano em pompa e esplendor. Em teoria, João V era um monarca
com poderes absolutos. Na prática, era apenas um escravo dos sacerdotes. A
Igreja era a instituição mais poderosa do país, beneficiando de tal maneira da
indulgência do rei, que não se sabia onde a autoridade eclesiástica terminava e
a autoridade do monarca começava. A Companhia de Jesus tinha indiscutível poder
e influência, controlando todo o sistema de ensino, confessando toda a família
real e tendo construído, sempre em nome da defesa da fé católica, uma
considerável teia de poderes por todo o reino.
O arcebispo de Lisboa, conhecido como
patriarca, tinha sido elevado à dignidade de pontífice. Usava vestes similares
às do Papa e era auxiliado por um Sacro Colégio de vinte e quatro prelados que envergavam trajes escarlates. Não há no mundo nenhum eclesiástico, escreveu Joseph Baretti, amigo do dr. Johnson, que
seja rodeado de tanta pompa como este Patriarca.
O rei construía conventos e igrejas,
cobria-os com mármores raros e enchia-os de tesouros: altares de ouro e prata
cravejados de pedras preciosas, quadros e esculturas de Itália, bibliotecas com milhares de livros. A sua alegria eram as procissões religiosas, escreveu Voltaire. Quando se apegava à construção, edificava mosteiros; quando
queria uma amante, escolhia uma freira. O convento predileto de João V era o de
Odivelas, onde tinha um apartamento forrado de tapetes e espelhos. Dois
dos seus muitos filhos bastardos foram ali concebidos». In Jenifer Roberts,
D. Maria I, A Vida Notável de uma Rainha Louca, Casa das Letras, 2012, ISBN 978-972-462-123-4.
Cortesia
de CdasLetras/JDACT