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O Comércio do Invisível
«(…) Leonor olhou para
uma roseira que tinha na portada do estrado da varanda. Era o início do mês de
Março e os dias nasciam luminosos e claros. A roseira estava cheia de rebentos
novos, onde espreitavam, da grandeza duma unha, leques de folhas vermelhas.
Podara-a com suprema delicadeza em Outubro ou Novembro. Juntara à severidade
dos cortes um pedido intimo de escusas. Acreditava numa sinergia de afectos, numa
convergência de propósitos entre a sua vida e a do reino vegetal. A roseira
ganhara durante os meses parados do Inverno uma seiva vigorosa que subira pelos
veios e explodia agora em todos os nós. Num dos cantos, sobre um dos pedúnculos
mais adiantados, uma cheia rosa vermelha, estoirara o envólucro verde das suas
sépalas verdes e mostrava, num punho cerrado, as suas pétalas virgens e
vermelhas, prontas para abrirem à luz da Primavera. Eu sou assim como esta rosa,
exortou, encostando os dedos às pétalas vivas que guardavam no seu seio os
filetes minúsculos dos estames. Não posso viver sem os espinhos que a guardam.
Veio por fim um dos mais
esperados momentos da vida de Pedro de Portugal. Tinha nos cárceres do sobrinho
de Castela dois dos matadores de Inês, Álvaro Gonçalves e Pero Coelho. Corria
que Diogo Lopes Pacheco conseguira à última hora, por um acaso milagroso,
escapar aos meirinhos de Pedro de Castela, mas à boca fechada dizia-se que a
fuga fora combinada por intermédio do camareiro-mor do rei de Portugal, João
Afonso Telo, com o acordo tácito do soberano. Contentava-se o rei com os outros
dois, deixando homiziado o Pacheco, cunhado ainda do seu conde. Por outro lado,
o túmulo real de Inês avançado ia em Alcobaça. Tinha-o nas mãos um mestre
canteiro que parecia haver compreendido, assim se dizia na corte, o desígnio de
eternidade que Pedro pedia para o seu amor. O rei não tinha repouso. Há anos
que esperava aquele momento. A justiça que praticava nos desgraçados que ia
apanhando pelos caminhos e pelos lugarejos mais distantes já não tinha sabor.
Continuava inexorável, mas baraço e chicote não passavam agora do ensaio do
grande drama que vislumbrava próximo. Queria nas mãos os matadores de Inês.
Antes disso, pensava ele, o seu sentido de justiça sempre sofreria maleita
insanável. Tinha nos seus calabouços da alcáçova de Lisboa os quatro castelhanos
que o sobrinho exigia para lhe entregar os dois ministros do pai.
Toste se faça a troca na
fr..., fronteira de Elvas, ordenou ele ao seu primeiro camareiro. Os bargantes
de Castela sa..., saem de Lisboa e os satanases que abocanharam a inocente de
Sevilha. Ve…, venham os perros, venham do inferno que danças e tr..., trebelhos
hemos cá para eles, eh-eh. Sonhava aquele momento com raiva, uma raiva boa,
porque a sentia vibrar dentro de si em nome da justiça, que era para ele a
virtude pura, sem mistura de manchas ou de interesses. Para Pedro não havia
Deus sem justiça; o entendimento de Deus, que era Pai, traduzia-se na ideia de
justiça. Por isso exigia momento a momento ao canteiro de Alcobaça que na pedra
do túmulo da sua amante e santa figurasse aquele episódio que era para ele o
sinal da vontade divina, o Juízo Final. Pudesse ele ser o Deus desse momento!
Que bem se via no lugar do Pai do céu! Quem lhe dera nas mãos a missão de
julgar a multidão final das almas!
Continuava a enganar as insónias com o som das trombas de prata, longas
e canoras, saltando ligeiro para a rua e convidando com berratas os mesteirais
e os homens-bons a dançar com ele. Primeiro, aliviado de pensamentos negros, bailava
ao som das trombas de prata dos seus pajens; depois, quando os alvores da madrugada
despontavam a oriente e a luz viva das grandes tochas começava a empalidecer,
mandava o mordomo-mor ao paço trazer viandas, pão e vinho para que todos
comessem e bebessem antes do destroçar». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de
Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.
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