domingo, 10 de fevereiro de 2019

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «Continuava a enganar as insónias com o som das trombas de prata, longas e canoras, saltando ligeiro para a rua e convidando com berratas os mesteirais e os homens-bons a dançar com ele»

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O Comércio do Invisível
«(…) Leonor olhou para uma roseira que tinha na portada do estrado da varanda. Era o início do mês de Março e os dias nasciam luminosos e claros. A roseira estava cheia de rebentos novos, onde espreitavam, da grandeza duma unha, leques de folhas vermelhas. Podara-a com suprema delicadeza em Outubro ou Novembro. Juntara à severidade dos cortes um pedido intimo de escusas. Acreditava numa sinergia de afectos, numa convergência de propósitos entre a sua vida e a do reino vegetal. A roseira ganhara durante os meses parados do Inverno uma seiva vigorosa que subira pelos veios e explodia agora em todos os nós. Num dos cantos, sobre um dos pedúnculos mais adiantados, uma cheia rosa vermelha, estoirara o envólucro verde das suas sépalas verdes e mostrava, num punho cerrado, as suas pétalas virgens e vermelhas, prontas para abrirem à luz da Primavera. Eu sou assim como esta rosa, exortou, encostando os dedos às pétalas vivas que guardavam no seu seio os filetes minúsculos dos estames. Não posso viver sem os espinhos que a guardam.

Veio por fim um dos mais esperados momentos da vida de Pedro de Portugal. Tinha nos cárceres do sobrinho de Castela dois dos matadores de Inês, Álvaro Gonçalves e Pero Coelho. Corria que Diogo Lopes Pacheco conseguira à última hora, por um acaso milagroso, escapar aos meirinhos de Pedro de Castela, mas à boca fechada dizia-se que a fuga fora combinada por intermédio do camareiro-mor do rei de Portugal, João Afonso Telo, com o acordo tácito do soberano. Contentava-se o rei com os outros dois, deixando homiziado o Pacheco, cunhado ainda do seu conde. Por outro lado, o túmulo real de Inês avançado ia em Alcobaça. Tinha-o nas mãos um mestre canteiro que parecia haver compreendido, assim se dizia na corte, o desígnio de eternidade que Pedro pedia para o seu amor. O rei não tinha repouso. Há anos que esperava aquele momento. A justiça que praticava nos desgraçados que ia apanhando pelos caminhos e pelos lugarejos mais distantes já não tinha sabor. Continuava inexorável, mas baraço e chicote não passavam agora do ensaio do grande drama que vislumbrava próximo. Queria nas mãos os matadores de Inês. Antes disso, pensava ele, o seu sentido de justiça sempre sofreria maleita insanável. Tinha nos seus calabouços da alcáçova de Lisboa os quatro castelhanos que o sobrinho exigia para lhe entregar os dois ministros do pai.
Toste se faça a troca na fr..., fronteira de Elvas, ordenou ele ao seu primeiro camareiro. Os bargantes de Castela sa..., saem de Lisboa e os satanases que abocanharam a inocente de Sevilha. Ve…, venham os perros, venham do inferno que danças e tr..., trebelhos hemos cá para eles, eh-eh. Sonhava aquele momento com raiva, uma raiva boa, porque a sentia vibrar dentro de si em nome da justiça, que era para ele a virtude pura, sem mistura de manchas ou de interesses. Para Pedro não havia Deus sem justiça; o entendimento de Deus, que era Pai, traduzia-se na ideia de justiça. Por isso exigia momento a momento ao canteiro de Alcobaça que na pedra do túmulo da sua amante e santa figurasse aquele episódio que era para ele o sinal da vontade divina, o Juízo Final. Pudesse ele ser o Deus desse momento! Que bem se via no lugar do Pai do céu! Quem lhe dera nas mãos a missão de julgar a multidão final das almas!
Continuava a enganar as insónias com o som das trombas de prata, longas e canoras, saltando ligeiro para a rua e convidando com berratas os mesteirais e os homens-bons a dançar com ele. Primeiro, aliviado de pensamentos negros, bailava ao som das trombas de prata dos seus pajens; depois, quando os alvores da madrugada despontavam a oriente e a luz viva das grandes tochas começava a empalidecer, mandava o mordomo-mor ao paço trazer viandas, pão e vinho para que todos comessem e bebessem antes do destroçar». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT