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O
Mistério da Foz
«(…)
Fosse por que razão fosse, deu esse passo com tal entusiasmo e empenho que, um ano
volvido, já cingia uma banda de alferes. Nesse primeiro momento de recompensa, Mateus
congratulou-se por ter dado aquele rumo à sua vida. Era, então, muito atraído pelo
luzimento da vida militar e o brio e o mérito com que desempenhava as missões de
que o incumbiam, fizeram com que, em breve, chegasse a tenente e, alguns anos depois,
a capitão, o mais jovem capitão do regimento. Como prémio pelos bons serviços
prestados foi transferido para a Guarda Real de Polícia, ficando a comandar a 4.a
Companhia, à qual cabia a patrulha da parte norte de Lisboa e subúrbios.
Sentiu-se
honradíssimo com aquele comando. Estavam na Guarda Real os melhores soldados,
os mais fortes e mais firmes, e ele fez por merecê-los. Mas os tempos eram difíceis
e os mares encapelados. Corria, então, a Primavera de 1822 e os dias
revolviam-se na agitação política decorrente da revolução. O rei viera do Brasil
no Verão anterior, mas a sua chegada não apaziguara o ódio entre realistas e
constitucionais. Pelo contrário, acirrara-o pois na comitiva que, acompanhava o
monarca vinham muitos inimigos do espírito liberal, como dona Carlota Joaquina,
a megera de Queluz, ou o infante Miguel, que cedo se tornou o chefe da contra-revolução.
E, com os meses a passar, o inevitável braço-de-ferro começou a pender para os miguelistas,
o que Mateus muito lamentou, ainda que não fosse um liberal assumido. A bem dizer,
a política nunca lhe interessara. Na idade em que muitos dos seus camaradas de
armas já tinham paixões e convicções ele tinha apenas vagas curiosidades e nenhuma
comoção política parecia suficientemente forte para provocar vibrações nos seus
nervos. Em seu redor os países explodiam em revoluções e pronunciamentos, os povos
reivindicavam liberdades, igualdades, sufrágios, constituições, muitos dos seus
colegas liam e decoravam os discursos das assembleias, os escritos de Mirabeau e
as doutrinas dos filósofos que preparavam as revoluções, mas ele não costumava perder
tempo a pensar nisso. Para quê? Os homens eram todos falsos e venais, fossem eles
absolutistas ou constitucionais, e ele já vira como até as mais generosas ideias
liberais podiam alienar-se e transfigurar-se em armas tão impiedosas como as baionetas
de Soult. A letra da lei era a única coisa em que podia depositar uma confiança
cega e ele, um incréu, seguia a legislação civil e os regulamentos militares com
uma devoção quase religiosa.
O tio
dissera-lhe um dia: ser livre é ser amante da ordem e escravo da lei. Nós não
somos livres à maneira dos tigres. Somos livres como homens racionais o devem ser:
na obediência da lei, Mateus, na obediência da lei!
Mantivera
essa máxima e as leis passaram a ser, a par dos sentimentos que o faziam superar-se
ou comover-se, as únicas âncoras da sua existência. Coração e lei iam imprimindo
os mapas muitas vezes contraditórios que orientavam os seus rumos; o resto pouco
lhe interessava. Todavia, a luta política daqueles dias tumultuosos passava-se à
sua frente, debaixo dos seus olhos, e era-lhe impossível não ver que os malhados
(designação que os miguelistas davam aos liberais) procuravam seguir a lei e que
os seus opositores a violavam e deformavam, sem olhar a meios. Foi, portanto,
por razões morais e afectivas que Mateus Vilaverde acabou por ganhar um asco visceral
aos corcundas (forma como os liberais se referiam aos miguelistas) e à sua violência
infrene». In João Pedro Marques, O Estranho Caso de Sebastião Moncada, Porto
Editora, 2014, ISBN 978-972-004-495-2.
Cortesia
de PortoEditora/JDACT