jdact
O
Mistério da Foz
«(…)
Soltou um grito agudo quando um dos rapazes lhe acertou acidentalmente uma
pedrada numa perna. Ai, canalha.., ides ver, ides ver, ameaçou, de punho cerrado.
Mas logo retomou a sua conversa com Vilaverde: só se for a criada... Quem? A criada
do senhor Bessa. Mora ali abaixo e estava prenhe. Dizem que está de cama. Está,
está, confirmou alguém do grupo de vizinhos, que, entretanto, se acercara. Então,
cá pra mim foi o amásio dela que fez este lindo serviço, sentenciou Eufrásia. Vilaverde
assentiu com a cabeça e concluiu, virando-se para o cabo de polícia que o acompanhava:
bom, já temos uma suspeita. Interroguem a criada. Eu não tenho mais nada a fazer
aqui. Fez um aceno enquanto subia para a sela e já com o cavalo em andamento atirou
um rápido cumprimentos ao senhor comissário, afastando-se sem olhar para trás.
O cabo
arrebitou a arma e fez uma continência desajeitada. Era um homem esquelético e idoso
que parecia deslocado, quase grotesco, naquele arremedo de saudação militar. Vilaverde
lamentava aquela gente tosca que, sem remuneração alguma, se prestava a patrulhar
as ruas infestadas de criminosos. E lamentava ainda mais os homens velhos que, ali
no Porto, eram usados para o serviço da noite. Quando o sol se punha lá iam aqueles
pobres de Cristo nas suas rondas, ao ritmo do seu passo arrastado e escudados
nas suas armas ferrugentas, sem fechos nem pederneiras. Às vezes eram espancados
e roubados. Ser cabo de polícia era um mau negócio para o bolso e para o corpo
porque as isenções oferecidas pela lei não compensavam as agruras do serviço.
Os
comissários de bairro também não ganhavam nada com a função, mas desses ele não
tinha qualquer pena. Eram uns completos inúteis que o chamavam por tudo e por nada,
para investigar e deslindar as coisas mais óbvias e comezinhas. Infelizmente não
tinha outro remédio senão comparecer à chamada. Havia dois anos que estava, por
ordem superior, em missão especial ao serviço da Polícia do Porto, subordinado
ao Juiz do Crime e disponível para actuar em qualquer parte da cidade e arredores,
da Campanhã até à Foz e da Ribeira à Igreja da Lapa. E que trabalho duro e insano,
o seu! Para além da investigação criminal, no terreno, cabia-lhe verificar os relatos
que periodicamente os comissários dos bairros enviavam à autoridade superior. Estava
farto daqueles papéis ensebados, escritos com má caligrafia e fórmulas repetitivas,
e ainda mais farto das vidas sórdidas que eles devassavam e expunham. Já tinha a
sua conta de homens esfaqueados e de mulheres espancadas ou abusadas. Ainda anteontem
vira morrer nos braços do facultativo a pequena Rosa, uma menina loura e triste
que vivia na Bainharia. Dizia-se que o pai abusava dela e Mateus chegara a apertar
com o homem e a interrogar os vizinhos.
Mas
todos negaram e as suspeitas adormeceram até ao momento em que o chamaram de urgência,
juntamente com o médico. Rosinha desfazia-se em sangue, pois o pai dera-lhe uma
mezinha qualquer para afazer desmanchar. Uma mulher da vida chamou-o de uma
porta com ditos e provocações: tenho aqui uma coisa para ti, lindinho. Olha qu’isto
é melhor que seda... Ele ignorou-a e pôs o cavalo a trote, afastando-se dali.
Não gostava da Rua de Santa Catarina. Mesmo nos dias luminosos aquelas casas cinzentas
entremeadas de granito, nos sítios onde ainda não se edificara, tinham um ar lúgubre,
demasiado pesado e escuro para quem queria começar bem o dia. Aquela rua era triste
e ele estava cansado de tristezas, saturado da miséria humana com que quotidianamente
lidava ali no lodo da sociedade. E, em bom rigor, nada daquilo lhe competia.
Apesar do pomposo título de inspector, e de lhe terem permitido manter a farda,
o cavalo e um impedido às ordens, a sua era uma missão menor e menorizante, um castigo
encapotado a que a sua vida o levara e continuava a levar.
Mateus
Vilaverde tinha nascido em 1800, ali mesmo no Porto. O pai, comerciante de largo
trato, soubera erigir e manter uma casa farta, acolhedora, confortável, e foi num
ambiente próspero e carinhoso que ele viveu até aos nove anos de idade. De
súbito, sem pré-aviso, todo o mundo feliz e despreocupado da sua infância ruiu como
um castelo de cartas quando as tropas de Soult invadiram a cidade e os seus pais
e irmãos se perderam no desastre da ponte das Barcas. Acolhido em Trancoso por um
tio materno, coronel de milícias, passou os anos seguintes a dissipar o pungente
luto no ar áspero das serranias e a fazer-se homem, sob a enérgica orientação daquele
parente de grande coração e imponentes bigodes marciais. Aos dezasseis anos foi
para Lisboa assentar praça como cadete no Regimento de Cavalaria 1, aquartelado
em Alcântara. O tio encorajou-o a dar esse passo e ele deu-o sem saber
exactamente porquê. Talvez para se livrar de Trancoso, que era, podia jurá-lo, uma
das mais tristes vilas de Portugal. Ou então, para agradar ao tio para quem os valores
militares se sobrepunham a quaisquer outros. Ou, se calhar, para exorcizar, na atmosfera
dos quartéis, o desastre de guerra que marcara tão cruelmente a sua vida. Não sabia».
In
João Pedro Marques, O Estranho Caso de Sebastião Moncada, Porto Editora, 2014,
ISBN 978-972-004-495-2.
Cortesia
de PortoEditora/JDACT