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«(…) Mas aquele é o lugar certo para ela começar o dia que desponta, revendo desde o princípio
as gravuras do livro que a custo largara ao fim da tarde da véspera. Assim,
tremendo com o frio da madrugada, dirigiu-se afoita à escrivaninha que a avó
Leonor Távora lhe deu no Natal e a mãe quisera encostar à parede grande, do
lado direito da janela, diante da qual crescem a perder de vista as magnólias,
os cedros e as tílias. Mais tarde o sol cairá nas suas copas, soltando os
odores dolentes e doces a temperarem as essências ásperas, ácidas, a fazer
piscar os seus olhos toldados pelas longas pestanas. Leonor prefere a fulva
tonalidade da glicínia, que contamina o fundo do jardim com um rubor intenso,
trepando pelo muro alto, quase a chegar ao ferro do portão que abre para a
mata. Senta-se na cadeira alta e abeira-se do tampo da escrivaninha onde na
véspera cuidara de dissimular o livro, debaixo de papéis e cadernos que tirara
da mesa da biblioteca. Antes de o abrir afaga-lhe a capa castanha de pele
macia. Lá dentro encontram-se os mapas celestes, tal como lhos mostrara o pai,
debruçado sobre eles tardes inteiras na procura de respostas para as dúvidas de
ambos. Folheia uma após outra as páginas preciosas, detendo-se nas gravuras que
conhece de cor, na esperança de descobrir nelas um pormenor diferente, na
esfera armilar ou no astrolábio
de que tanto gosta de repetir o nome, no desenho onde se vê o sol ao centro com
planetas girando à sua volta. No cimo de muitos dos desenhos estão figuras de
anjos num curto voo parado, dando a ver a toda a largura dos seus braços
abertos faixas com frases escritas em latim. Em baixo, pensativa, encontra-se a
deusa da sabedoria, com a lira, os livros, enquanto marca equívoca da passagem
dos séculos.
Quando se aproxima devagar do fim do
álbum, dá-se conta de que a madrugada fizera esmorecer a luz cada vez mais
fraca da vela, não sabendo há quanto tempo a distracção a impede de ouvir os
ruídos da casa que desperta: os sons abafados vindos do sótão onde fica a ala
dos criados, a água que corre do jarro para uma bacia de louça, um objecto
caindo no desamparo do chão, o chiar áspero de gonzos a amordaçar o cochicho
das vozes à mistura com os frouxos de riso mal contidos pela palma das mãos
gretadas, logo seguido de um demorado arrastar de pés descalços, pesados de
sono. Escuta depois o estalar dos degraus que levam à cozinha, de onde não
tardará a subir o cheiro acre do café amargo, do leite fervido e das natas, das
papas de aveia e da aletria, do pão escuro aquecido em cima das brasas tiradas
do borralho das cinzas. Apercebendo-se de como começa a ficar tarde, Leonor fecha a contragosto A Revolução Dos Orbes Celestes de Nicolau Copérnico, escorrega da cadeira, agarra o xaile e
embrulha-se nele. Apaga em seguida o que resta do coto da vela, agarra no castiçal
com a mão miúda e, silenciosa, corre de volta ao quarto onde Maria ainda dorme,
enrolada nas mantas, cabeça debaixo da almofada de penas». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom
Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.
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