O Comércio do Invisível
«(…) A luta que se travava no plano visível da Natureza degradada, com
seres cegos e impiedosos, devorando e sendo devorados, continuava de forma
ainda mais atroz no plano das emanações invisíveis terrenas. Uma fada que fosse
cooptada por um monstro, servia de imediato as disformidades do seu hospedeiro,
perdendo-se para sempre. O contrário porém era impossível; nenhuma fada, nenhum
elfo ou nenhum génio volátil, emanação do mais leve e anódino animal de asas e
penas, se podia tornar hospedeiro dum monstro, reformando-o dentro de si.
Enquanto a humanidade não deixasse de ser pábulo das trevas, as benéficas
emanações da Natureza material haviam de continuar a viver uma vida de fugitivas,
sem qualquer possibilidade de exporem a sua mansidão, vencendo o horror das
emanações disformes.
Leonor Teles, tendo visitado os planos angélic osda criação anterior à
formação da Terra, possuía na alma uma irremediável nostalgia do além. O seu narural
impulso atirava-a para esse píncaro de Luz, onde o Criador residia num estado
próximo do Nada, alimentando-se em si, de si e para si. Tinha por isso momentos
em que detestava estar viva, na Terra, sendo pertença da mesma criação terrena
que parira lobos carniceiros, ursos ferozes, insectos sanguinários. Sentia-se
anjo, essência nómada, olor luminoso, não mulher. Não percebia porque razão adquirira
um vestuário de carne e sangue, idêntico ao de tantos seres densos, cegos e
inferiores. Nessas alturas, em que a tristura de se sentir viva era tanta, falando
alto consigo, como lhe sucedia sempre que estava só, desafogava. Isto é uma
tulha do Inferno. O demo me prendeu a esta terra maldita de vinte passos!
Outros momentos tinha em que se adequava melhor à sua situação carnal, compreendendo
que depois da vinda de Cristo à Terra era mister continuar uma obra de resgate,
em que ela teria, não sabia onde nem como, um papel escolhido. Havia o sinal de
Caim e o sinal de Jesus; aquele era uma nódoa escura, um ponto negro, e este um
fumo branco, uma fragrância estonteante, derradeiro e precioso vestígio das
correntes do bdélio que o paraíso terreal, no momento inicial da criação,
conhecera. Por isso a tunicela de aromas estonteantes que de quando a quando na
solidão a visitava de modo tão inebriante era para a jovem Leonor Teles o traço
da sua aliança com Jesus. Nela o perfume era uma essência espontânea da alma e
não uma exalação exterior. Não precisava de procurar as destilações exteriores
que faziam o furor da irmã e da prima para sentir as sublimações da transcendência.
Esse traço lhe chegava para saber que, não conhecia onde nem quando, teria um
papel a desempenhar na história da redenção do mundo terreno.
Por agora, calava e escondia. Guardava o interior dos seus aposentos para
manifestar aquilo que mais cerca andava da sua essência. No exterior reservava-se
no silêncio, por vezes até na rispidez, não se desavindo por passar por aquilo
que não era, uma menina brava e de mau humor. Na intimidade, expandia-se. Deixava
de lado a cor escura da capa, o resguardo do capuz, a sombra do silêncio. Rodeava-se
de cores quentes e impressivas, como o amarelo e o laranja; perfumava o ar de essências
capitosas e inebriantes; adorava a voluptuosidade dos tecidos raros e aveludados.
Os seus aposentos nada tinham da cela austera duma casa religiosa; antes pareciam
os paços duma princesa mimosa que não suportasse senão o esplendor duma manhã ruidosa
de Maio. Caprichava nos adornos, nas colgaduras, nos bordados a fio de oiro; cercava-se
de plantas e de flores, que ela própria cuidava, delas tirando um brilho invulgar».
In
António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa,
2009, ISBN 978-989-8092-59-5.
Cortesia de Ésquilo/JDACT