jdact
A
Criada do conde Henrique. 1147
Lisboa, Outubro de 1147
«(…) Não notando nela o
abatimento geral dos dias anteriores, dei por mim a duvidar se essas emoções
teriam sido genuínas. A Zaida do passado, animada, gentil, meiga, marota e interessada,
estava de regresso. E a razão era óbvia: Afonso Henriques. A princesa de
Córdova, apercebi-me em pouco tempo, iria ser mais uma das amantes do meu
melhor amigo. Lourenço, estais com boa cara!, saudou este. Mandara-o chamar
porque era tempo de ele e todos nós ouvirmos a história completa da intriga
de Compostela. Quem a vai contar é dona Justa, afirmou a minha cunhada,
para atrapalhação da ama. Embaraçada, esta tapou a cara com as mãos e gemeu: meu
Deus, perdoai-me por quebrar a jura que um dia fiz.
Lisboa, Outubro de 1147
Vossa tia era um monstro, afirmou
a ama. O meu melhor amigo encolheu os ombros, a rainha Urraca já morrera há muito
e nunca gostara dela. O que o intrigava era o papel desempenhado por dona Justa.
Como haveis conhecido o meu pai? A minha mãe era cozinheira em Astorga. Com apenas
doze anos, a menina Ana Justa passara a viver na fortificação, ajudando nas limpezas.
Mas aos quinze, durante um Inverno muito frio, a mãe falecera. Como gostavam dela,
Ana Justa manteve-se a trabalhar no castelo e, no Verão seguinte, conheceu o seu
dono, o conde Henrique. Lembro-me perfeitamente do primeiro dia em que vi vosso
pai, murmurou a ama, emocionada. A cavalo, com a enorme espada que sempre
trazia, a Tormenta, o conde Henrique era um fantástico cavaleiro, daqueles
que inspiravam as cantigas dos trovadores. Sois tão parecido, apreciou dona Justa,
observando o rei de Portugal. Por isso nunca acreditei no que diziam. Olhava para
vós e via vosso pai. Comovida, confessou o que todos intuíamos, que amara o conde.
Fora uma paixão de rapariga, que mantivera secreta e se amplificara quando ele a
escolhera para criada de quarto, o que a princípio afiou as más-línguas.
Ides abrir as pernas, tende cuidado
para não emprenhar, essas coisas. Mas ele nunca me desrespeitou, garantiu dona Justa.
Nessa época, o conde já tinha duas filhas de dona Teresa e, embora vivesse insatisfeito
por não ter um varão, não se metia com a criada. Limitava-se a dar-lhe ordens e
ela cumpria-as, agradada e enamorada. Corava quando ele falava e desejava mais,
mas isso nunca aconteceu. Só que até os homens bons têm segredos maus..., murmurou
dona Justa. Certo dia dona Urraca, meia-irmã de dona Teresa e cunhada do conde Henrique,
apresentou-se em Astorga. A amizade podia justificar uma visita, mas a razão da
presença era outra. A filha mais velha do imperador Afonso VI estava grávida de
alguns meses.
Mal enviuvou, dona Urraca deu-se a
uma vida dissoluta, acusou a ama. Coleccionava condes e até cavaleiros! Temendo
a fúria do pai imperador, Urraca decidira esconder-se naquele obscuro castelo, cujo
proprietário logo mandou chamar. Quando chegou a Astorga, o conde Henrique ficou
naturalmente aflito, pois dona Urraca obrigou-o a manter segredo perante todos.
Sobretudo de vossa mãe, dona Teresa, contou a ama. Preocupado, o conde deu
ordens específicas à leal criada. Só ela falaria com Urraca e a ajudaria no dia
do parto. E assim foi. Quando a criança nasceu, Ana Justa cortou o cordão,
lavou o sangue e vestiu o menino. Dedicada e calada. Mas vossa tia era má. Deu a
vida ao filho e logo pensou em tirá-la, protestou dona Justa». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras,
2017, ISBN 978-989-741-713-9.
Cortesia da CasadasLetras/JDACT