«(…) A poucos dias de morrer,
quando o rei João II, já totalmente debilitado, chamou aos aposentos Aires
Silva e Antão Faria, dois fiéis servidores, e o moço de escrivaninha, Garcia Resende,
para lhes ditar o testamento, a rainha, apercebendo-se da situação, pediu a
outro amigo, também ele seu indefectível apoiante, frei João Póvoa, que se
introduzisse na antecâmara e tentasse perceber se o moribundo cumpria a
promessa de nomear o cunhado duque Manuel seu sucessor, conforme lhe jurara
dias antes, ou se alguém por ele codificava o documento. Honrando, porém, a
palavra, destroçado pela chantagem da mulher e convencido da teoria de uns
tantos conselheiros, segundo a qual Jorge era novo demais para se defender dos
poderosos inimigos que o próprio rei, enquanto homem saudável, só pôde vencer
com o recurso aos mais violentos processos, João II pediu enfim para lhe
escreverem as disposições testamentárias que, muito a custo e com enorme
sofrimento físicos e emocional, ele menos desejava:
Conhecendo
eu como a serviço de Deus e ao bem destes meus reinos e senhorios, cumpre, se
eu falecer da vida deste mundo antes de passar um ano da feitura deste
testamento, que o duque Manuel, meu muito amado e prezado primo e cunhado, os
haja e possua. Não tendo eu filho ou filha legítimos e, portanto, de meu moto próprio
certa ciência de livre vontade, ao dito duque meu primo e cunhado deixo todos
os reinos e senhorios de que Deus me fez Rei e Senhor. Com a bênção Dele, a
minha e de todos os nossos avós, encomendo-lhe a justiça e o bom regimento
deles.
Assim estava feita a vontade a
dona Leonor; assim chegava Manuel ao cobiçado trono.
Mas apesar de vencido pelas
circunstâncias, João II não deixou de acrescentar ao testamento uma série de cláusulas
que de algum modo lhe atenuavam os sentimentos de culpa por não ter sido capaz
de se impor à mulher nos derradeiros momentos da sua vida. Nesse sentido, doava
a Jorge o ducado de Coimbra que pertencera ao avô, infante Pedro, e rogava ao
futuro rei que cedesse ao jovem o mestrado da Ordem de Cristo, de modo a
acrescentá-lo aos de Sant’Iago e de Aviz de que era detentor há muito tempo. Além
disso, pedia a Manuel, mui amado e
prezado primo e cunhado,
que adoptasse Jorge e o nomeasse herdeiro do trono, no caso de Deus não lhe
consentir filhos legítimos. E mais: se em vez de filhos o Altíssimo entendesse
dar-lhe apenas filhas, que uma delas casasse com Jorge.
Quanto aos traidores do reino que
tinham fugido de Portugal e se haviam homiziado no estrangeiro, recomendava que
os mantivesse proscritos, bem como os seus familiares directos. Finalmente,
apelava à benevolência de Manuel para com a desventurada princesa dona Joana,
antiga noiva de Afonso V, efémera rainha de Portugal, antiga regente do reino,
tutora de Jorge, e, naquela altura, já dada ao hábito por amor a Deus no
mosteiro de Jesus de Aveiro. Este fora, aliás, o último pedido de João II
passado a testamento:
Ao
dito duque meu primo, encomendo e rogo que honre e trate bem a Excelente
Senhora minha prima, e que sempre a tenha bem e honradamente como pertence a
pessoa que é, e que foi.
Dias mais tarde, a vinte e cinco
de Outubro de mil quatrocentos e noventa e cinco, o rei João II, assistido pelo
bispo de Lisboa, Diogo Ortiz Vilhegas, morria em Alvor, para onde fora
conduzido uma semana antes em estado de profunda debilidade física. Tinha
quarenta anos». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008,
ISBN 978-989-555-364-8.
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