quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Ao dito duque meu primo, encomendo e rogo que honre e trate bem a Excelente Senhora minha prima, e que sempre a tenha bem e honradamente como pertence a pessoa que é, e que foi»

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«(…) A poucos dias de morrer, quando o rei João II, já totalmente debilitado, chamou aos aposentos Aires Silva e Antão Faria, dois fiéis servidores, e o moço de escrivaninha, Garcia Resende, para lhes ditar o testamento, a rainha, apercebendo-se da situação, pediu a outro amigo, também ele seu indefectível apoiante, frei João Póvoa, que se introduzisse na antecâmara e tentasse perceber se o moribundo cumpria a promessa de nomear o cunhado duque Manuel seu sucessor, conforme lhe jurara dias antes, ou se alguém por ele codificava o documento. Honrando, porém, a palavra, destroçado pela chantagem da mulher e convencido da teoria de uns tantos conselheiros, segundo a qual Jorge era novo demais para se defender dos poderosos inimigos que o próprio rei, enquanto homem saudável, só pôde vencer com o recurso aos mais violentos processos, João II pediu enfim para lhe escreverem as disposições testamentárias que, muito a custo e com enorme sofrimento físicos e emocional, ele menos desejava:

Conhecendo eu como a serviço de Deus e ao bem destes meus reinos e senhorios, cumpre, se eu falecer da vida deste mundo antes de passar um ano da feitura deste testamento, que o duque Manuel, meu muito amado e prezado primo e cunhado, os haja e possua. Não tendo eu filho ou filha legítimos e, portanto, de meu moto próprio certa ciência de livre vontade, ao dito duque meu primo e cunhado deixo todos os reinos e senhorios de que Deus me fez Rei e Senhor. Com a bênção Dele, a minha e de todos os nossos avós, encomendo-lhe a justiça e o bom regimento deles.

Assim estava feita a vontade a dona Leonor; assim chegava Manuel ao cobiçado trono.
Mas apesar de vencido pelas circunstâncias, João II não deixou de acrescentar ao testamento uma série de cláusulas que de algum modo lhe atenuavam os sentimentos de culpa por não ter sido capaz de se impor à mulher nos derradeiros momentos da sua vida. Nesse sentido, doava a Jorge o ducado de Coimbra que pertencera ao avô, infante Pedro, e rogava ao futuro rei que cedesse ao jovem o mestrado da Ordem de Cristo, de modo a acrescentá-lo aos de Sant’Iago e de Aviz de que era detentor há muito tempo. Além disso, pedia a Manuel, mui amado e prezado primo e cunhado, que adoptasse Jorge e o nomeasse herdeiro do trono, no caso de Deus não lhe consentir filhos legítimos. E mais: se em vez de filhos o Altíssimo entendesse dar-lhe apenas filhas, que uma delas casasse com Jorge.
Quanto aos traidores do reino que tinham fugido de Portugal e se haviam homiziado no estrangeiro, recomendava que os mantivesse proscritos, bem como os seus familiares directos. Finalmente, apelava à benevolência de Manuel para com a desventurada princesa dona Joana, antiga noiva de Afonso V, efémera rainha de Portugal, antiga regente do reino, tutora de Jorge, e, naquela altura, já dada ao hábito por amor a Deus no mosteiro de Jesus de Aveiro. Este fora, aliás, o último pedido de João II passado a testamento:

Ao dito duque meu primo, encomendo e rogo que honre e trate bem a Excelente Senhora minha prima, e que sempre a tenha bem e honradamente como pertence a pessoa que é, e que foi.

Dias mais tarde, a vinte e cinco de Outubro de mil quatrocentos e noventa e cinco, o rei João II, assistido pelo bispo de Lisboa, Diogo Ortiz Vilhegas, morria em Alvor, para onde fora conduzido uma semana antes em estado de profunda debilidade física. Tinha quarenta anos». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
                                                                                                                 
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